Daniel Campos

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Para além do espelho

- Oi.

Silêncio.

- Eu acho que não nos conhecemos?

Silêncio.

Silêncio.

- Você se lembra de mim?

Silêncio.

Silêncio.

Silêncio.

- Você está de passagem?

Silêncio.

Silêncio.

Silêncio.

Silêncio.

Você não vai dizer nada, não é?

Silêncio.

Silêncio.

Silêncio.

Silêncio.

Silêncio.

- Chega! Quem é você? O que fez comigo? Com o meu rosto, com a minha boca, com o meu corpo? Aonde estão meus olhos que não conseguem ir além desses seus olhos?

Silên...

Diante da falta de resposta, a mulher de tantas perguntas sufoca o silêncio com um silêncio nervoso. E não só o silêncio da mulher que se olha no espelho, mas o silêncio do espelho também fica nervoso. Aquela imagem reproduzida no espelho, segundo ela, não é ela. É outra. E quem sabe fosse por essa outra que seu marido estivesse apaixonado. E quem sabe fosse por essa outra que seus filhos estivessem tão encantados. E quem sabe fosse essa outra que lhe roubava seus dias. Ultimamente, seus dias não eram seus dias. E ela mais do que sentir, via isso. Aquele reflexo explicava tudo. E não era porque estava mais gorda ou mais margra, que seus cabelos estivessem mais coloridos do que de costume, que estivesse usando uma cor de batom que nunca usou, que estivesse usando um olhar que nunca usou, que estivesse usando um decote que nunca usou que ela tinha certeza que não era ela. O que pesava mais forte nessa certeza era o silêncio.

Ela não era de silêncio. Era de muita fala. Por isso escolhera ser atriz. Adodrava passar horas e horas em cima de um palco. E quando fora do palco, horas e horas decorando seu texto em voz alta. E de preferência fazendo um monólogo. Enchia de palavras os ouvidos do marido, dos filhos, da empregada, da vizinha. Talvez fosse por isso que todos estavam diferentes com ela no úlitmos dias. Jamais experimentara o silêncio antes. E ainda mais um silêncio tão real e calado como este. Não era um silêncio de teatro, mas um silêncio de carne e osso. Ela avança, sacode o espelho, tenta estrangular aquele que dizia não ser ela e não contente, esbofeteia o espelho. E no auge de sua loucura, não sentia dor em suas bochechas rosadas. Mas ela queria mais. E mais. E mais.

Ela vai até a cozinha e ameaça a sua própria imagem. Segundo ela, não tão própria assim. Quase imprópria. Aperta a faca, e num desespero risca o corpo da tal mulher como se esperasse, a qualquer momento, arrancar um grito. Mas ela não gritava. Não gemia. Não sussurrava. Permanecia em silêncio. Tão em silêncio quanto o sangue que manchava a sua roupa vindo dos riscos de faca. Ela vai para o banheiro se enxugar e quando olha no espelho do banheiro... Ali está a tal mulher.
Em carne, osso e reflexo.

Corre para sala e o mesmo retrato da outra no espelho. Corre para o espelho do carro, a estranha continuava ali, esperando se soltar. Só não quebrava os espelhos porque tinha medo dos anos e anos que as supertições lhe dariam de azar. Mas ela também aparecia no reflexo das panelas areadas, no espelho do estojo de maquiagem, no reflexo das águas da piscina. Sem ter para onde fugir, toma os remédios que já a acompanhavam há algum tempo. E o tempo parecia ser infinito naquela mulher feita de silêncio.

Ela roda, tonteia e, valendo-se da sua experiência de atriz, cai, cinematograficamente, nas costas da cama. Cochila e acorda com um grito. Para seu grande despespero, no relfexo do espelho que ficava no teto do quarto, aquele espelho que fora uma fantasia de seu marido, que não era mais seu, mas da outra, aquela mulher que dizia não ser ela, gritava. Gritava o silêncio que sempre lhe habitou e ela nunca quis ouvir.


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