Daniel Campos

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28/03/2015 - Partes de mim

Meu pai entrava no meu quarto para ouvir Chico Buarque, Tom Jobim, Caetano Veloso. Minha vó criava tartarugas. Acostumei ver minha mãe com as mãos envoltas de linhas, botões e farinha. Meu avô era dono de histórias que me faziam viajar na imaginação. Minha bisavó foi posta num balão e sumiu pelos céus. Meus melhores e únicos amigos de infância e juventude foram lápis, borracha, papel. Meu primeiro cachorro, que não era meu mais do meu pai, chamava Bizuco. Minha avó me passava dentro de seu terço. Meus personagens sempre deixaram as páginas dos romances para conviver comigo. Meu professor de desenho não me deixava criar, só copiar. Meu avô, com seus olhos de catireiro, só me admitia um caminho: ser um homem bom. Meus pés sempre gostaram de pisar descalços na grama orvalhada, na terra fofa, nos botões de algodão que ficavam guardados na tulha. Minha vizinha tinha um mercadinho onde eu marcava tudo na conta de minha mãe. Meus animais de estimação eram cachorros, gatos, porcos, vacas, galinhas, pássaros... Minha tia queria me embebedar com geleia de pinga e licor de jabuticaba. Meu pai sempre me encantou com o barulho de máquina de escrever que fazia em meus ouvidos. Minha língua sempre foi a língua das árvores. Minha professora de inglês dizia que eu só ia aprender a língua quando deixasse de escrever as histórias em português na minha cabeça. Meu tio foi o maior piloto que já conheci mesmo só o tendo visto voar no chão. Minha mãe arrancava as folhas do meu caderno até que a lição estivesse do seu gosto. Meu irmão arrancava meus dentes e ainda fazia cara de santo. Meu pai me deixava caído com seus dribles desconcertantes no campinho do sítio. Muito da minha história foi escrita com terra vermelha. Minhas namoradas eram princesas de reinos distantes, estrelas que viravam mulheres, sereias de mares profundos que vinham flertar comigo e só eu via. Meus pés sempre foram de jabuticaba, manga, goiaba... Meus tios-avôs eram personagens de um enredo grego-mexicano, regado a dramas apimentados. Minha professora do ginásio me achava um ótimo escritor. Minha cachorra, chamada Kika, comia chocolate e pulava de cama em cama para tomar sol. Meu irmão fazia cidades inteiras com pecinhas de montar. Meu professor de violão gostava mais de comer os bolos e doces de minha mãe do que de me ensinar alguma coisa. Meus padrinhos de batismo nunca foram à missa comigo. Meu bisavô tinha um pé de groselha. Meu mundo sempre foi um mundo paralelo, feito de seres fantásticos, de criaturas encantadas, de lendas e magias.


Comentários

30/03/2015, por Etel:

Adoramos, muitas lembranças boas.beijos


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