Daniel Campos

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Se eu morrer de amor

Se eu morrer de amor, quero fazê-lo só depois de amanhã, quando, enfim, possa me despedir com plena calma da criatura amada. Que o amanhã seja longo para ter tempo de dizer tudo o que angustiei no cárcere das minhas cordas vocais. Falar, murmurar, recitar... Da maneira mais natural possível, só para ver cada reação dela a uma nova revelação, a uma nova palavra, a um novo eu. Se eu morrer de amor... O amanhã deve ser saboreado numa degustação refinada e demorada, a fim de apagar o dissabor dos encontros idealizados. Definitivamente, o amanhã precisa tender ao infinito para que a despedida não seja inacabada, nem tenha perspectivas de volta, sendo última sem nunca ter sido primeira. A despedida, obrigatoriamente, não deve selar o fim, apenas uma espera do amor. A espera pela mulher amada. Se eu morrer de amor... Escorrerei meus dedos descrentes sobre toda a superfície concreta do seu corpo, para lembrar a causa do meu amanhã derradeiro.

Não quero morrer em um sábado, em um domingo, em um feriado para não atrapalhar os jovens casais de namorados que passeiam de mãos dadas pelas ruas descobrindo o amor, ainda inconscientes em relação ao seu "porquê". Também não quero deixar o estado carnal na hora do almoço ou do jantar, evitando, assim, alguma indigestão repentina. Tampouco penso em morrer dormindo (qual o prazer de dar as mãos à morte e não presenciar seus rituais?). Quero viver o último momento de maneira infinita se eu morrer de amor. Se bebesse talvez quisesse tê-la em um copo de bar, ao término do último gole, sentindo-a escorrer pela garganta como um fio de álcool. Poderia escolher entre a frieza de uma cerveja ou o aroma amargo de um conhaque. Mas não bebo, serei um defunto sóbrio. Talvez até sem graça, serei aquilo e só, nada mais. Portanto não criem expectativas ou irei frustrá-las. Prefiro o anonimato, portanto, não anunciem minha morte nos jornais ou nas rádios. Não quero assinar a minha morte, quero somente testemunha-la. Também não me entoem gritos, desesperos, aflições, soluços,..., quero a porção feminina do silêncio para segurar a minha mão, o silêncio calado, tendo à boca uma tarja negra.

Não me doem orações prontas, missas com convites, ofereçam-me somente preces mudas. Se eu morrer de amor que morra com a roupa que estiver no corpo, não me façam um manequim pré-estabelecido. Quero as roupas que ela se acostumou a ver em meu corpo. As mesmas camisas, calças e sapatos. Quero ser um morto com estilo próprio. Se eu tiver algum verso no bolso, não o leiam, entreguem-no a ela, ao verso, certamente, não haverá outro destino. Não me acendam velas, chamas artificiais e baratas, mas deixem-me apenas com as luzes dos olhos inconsolados. Se eu morrer de amor... Não quero ser causa de noites mal dormidas por causa de algum remorso, por isso digo com letras claras, perdôo a todos, inclusive a mim. Espero que também me perdoem ou, pelo menos, que me entendam. Depois da morte não me interessa se me taxarem de fraco, covarde. Saibam que para morrer de amor é preciso muita coragem e muito juízo. Ter consciência da entrega total e irreversível. Morrer dessa forma é sacrificar a carne para elevar o amor à condição suprema.

Maus os amantes os que amam sob os limites do plano terreno. Poucos os que conseguem superar o amor moldado, comum. Se eu morrer de amor... Não ambiciono deixar claro meu ato de encerramento, mas a causa deste. Não discurse a pessoa que fizera da vida um discurso inacabado. Que sobre meu corpo não venham repousar apelos ou lamentos falsos, a estes, só peço que me deixem morrer de amor em paz. Quero deixar os meus escritos para aqueles que não me conheceram, quero que os leiam sem possuir nenhuma linha sequer; que meus versos sejam livres, e se preciso for, lance-os ao vento, não importa se sul ou norte, apenas deixem uma cópia de tudo com ela, de preferência as manuscritas (nestas, o sentimento estará sempre fresco). Se eu morrer de amor... Não se lembrem de mim como pessoa, pelo contrário, lembrem-me como poesia. Quando sentirem minha falta, leiam alguma coisa que escrevi. Não invoquem meu nome... Declamem meus versos.

Aos que temem assombrações, fiquem tranqüilos, não irei fazer aparições em ruelas, em guetos, em quartos vazios, se hei de aparecer o farei, exclusivamente, a ela e de forma branda; prometo não a causar espanto, receio ou coisa parecida. Porém nada irá me impedir de vê-la e em alguns instantes... Sê-la. Se eu morrer de amor... Não comprem flores para mim, que a adquiram em meu nome e deixem-nas nas mãos da minha mulher amada, de preferência flores rosadas. Não um rosa qualquer, menciono aquele rosa presente numa blusa de alça que habituei a regar de admirações. A escolha do lugar é o que menos me preocupa, não ambiciono ambientes paradisíacos, aqueles de tons pastéis, nem mesmo exijo a cama da pessoa amada como último leito, faço questão apenas de morrer diante dos olhos dela. Quero nesse momento estar a sós com ela. A sós da realidade, do cotidiano, das regras. Eu, ela... Nós.

Almejo ver a morte nos olhos da amada, e nesse momento, então, quero olhá-la em sua beleza infinda e buscar a certeza de que vale a pena me consumar por ela. E tendo essa confirmação irei estender-lhe as mãos (não, não terei tempo para isso) e tomá-la em meus braços para uma dança de palavras, no ritmo das minhas últimas pulsações. Sentirei o seu corpo colado ao meu, os movimentos de suas pernas, dos seus braços, do seu pescoço. Sentirei a sua corrente sangüínea, a balada dos seus pulmões, o som de um cílio se curvando... Se eu morrer de amor... Quero que deixe os cabelos soltos para que eu possa esconder neles alguns segredos irrelevantes para mais tarde, enfim, serem descobertos. Quando a dança se findar, irei roçar a sua pele com minha alegria incompreendida e me pegar totalmente inerte perante seu corpo, ou melhor, além de seu corpo. Os pensamentos estarão estritamente proibidos. Não iremos pensar, (já nos fora dado tempo demais para isso), apenas iremos nos sentir. Que esse momento seja o mais longo possível.

Se eu morrer de amor... Sem dizer nada possuirei seus lábios, de um jeito nunca previsto, sequer imaginado, segundos ou horas, corpos ou pessoas, decisões ou destinos... E dessa união de bocas será me passada a morte. Na saliva da mulher amada irei conhecê-la sem mais formalidades. E ainda terei tempo para desprender-me dos seus lábios (não que o quisesse, mas será preciso), olharei nos seus olhos mais uma vez e desta última, verei a vida se desvirginando. Se eu morrer de amor... Irei soltar minhas mãos dos seus ombros trêmulos e, num gesto lento, curvarei meus joelhos como quem se consagra a Deus. Só então ela virá ao meu encontro e pousará a minha face despida em seu colo, dizendo-me, em uma única lágrima, tudo o que sempre quisera ouvir em vida. Se eu morrer de amor... Desvendarei no brilho, fosco e áspero, da solitária lágrima vertente da amada, a desilusão, em seu verdadeiro ser, existente no nosso amor em desencontro.


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