Daniel Campos

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01/04/2015 - No meu interior

Lá no meu interior do interior do mato
Carne é embrulhada em jornal de ontem
Verdura é trazida orvalhada pelo carroceiro
O copo vazio vai pro pasto e volta com leite
A dona do mercadinho anota pra mãe da gente
As frutas são comidas diretamente no pé
O capim exala um perfume inconfundível
O jardim velho tem maçã-do-amor e churros
As ruas do centro são de paralelepípedo
Cedinho tem pão bengala no cesto de bambu
O frio é espantado no rabo do fogão a lenha
Galinha bota ovo azul com a gema vermelhinha
Tem mandioca brava e mansa, amarela e branca
Peixe morre mais na prosa do pescador do que no anzol
Chuva vara semana chegando a invernar
Os travesseiros são cheios de paina de paineira rosa
Em época de São João as cercas ficam laranjas, floridas
As nuvens aparecem com cara de bicho
Tem na praça picolé de groselha e de maçã
Crianças brincam de colher casca de cigarra
Torresmo curte no fundo de uma lata de gordura
Todo mundo se encontra na pracinha da Matriz
As estradas têm pedrinhas e pedregulhos de enfeite
Pelo caminho passam cavalos, tratores e devotos
As luas são esperadas, enamoradas e festejadas
Ainda existem árvores, nascentes e pássaros
A meninada vai à enxurrada com barquinhos de papel
A vizinhança senta na calçada pra prosear
Os céus ganham pipas, papagaios e maranhões
Pelas ruas vestidos floridos cruzam com chapéus
As amoras demoram dias para ir do rosa ao preto
O vento deita os capins e bota as folhas pra bailar
Colocar os pés na terra nos dá a sensação de raízes
A comida é servida na panela com aroma e quentura
Há sempre alguém para lhe dar uma mãozinha
Qualquer novidade é motivo pra um cafezinho
A passarada se aprochega da janela com certo pudor
O galo ainda canta caipira acordando o dia
Os pardais ficam pendurados na fiação elétrica
Os tizius dão seus pulinhos no muro
Os carros param pra boiada passar
O trem apita para pedir passagem
Há benzedeiras para quebranto e mau-jeito
Tem remédio pra tudo no canteiro mais próximo
O vento assovia que chega a conversar
Os cachorros se divertem com os gatos
Ainda existem avós de bordados e receitinhas
Há reza pra acalmar tempestade e fazer cobra cochilar
As senhorinhas fazem novena de casa em casa
Os burricos trazem o andor da santa
O saci é mais famoso que papai-noel e coelho da páscoa
Quaisquer duas árvores dá pra esticar uma rede
Na cozinha sempre tem goiabada curtida e queijo fresco
No domingo depois do almoço a cidade fica fantasma
As histórias escapolem dos livros e ganham as ruas
É mágico o ato de abrir ou fechar uma porteira
O rio corre mais devagar como que não querendo chegar
Há relojeiros criando o tempo por entre cordas e molas
As lembranças dão um jeitinho de grudar na memória
O coração é criado solto sem cabresto ou arame farpado
As tardes dão eco e o amor é ponteado na corda da viola
Há sonhos dando em rama, vagem, batatas, condões...
A galinhada pasta, se empoleira e choca do dia pra noite
A terra é fértil por demais pra dar causos dos bons
As criaturas encantadas andam sem medo de ser desacreditadas
Lá no meu interior do interior do mato
A terra é vermelha, cor de telha queimada
Os três santos festeiros ficam no alto de um mastro
A vida não tem lastro e deus ainda tem tato
O estradão só tem buraco de coruja, besouro e tatu
E ninguém tem vergonha de dizer “amo tu”


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