Daniel Campos

Caminhos De Mim


2007 - Prosa

Editora Auxiliadora

Resumo

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Per fumum

Não vejo nada, tampouco ouço. Hoje, sou só um nariz andando pelas ruas. Pelas ruas de fora, pelas ruas de mim. Sou como aqueles cães farejadores que se guiam pelo tempero dos cheiros. Quero viajar no mundo das memórias olfativas e resgatar todo afeto transformado em perfume. O momento é deveras apropriado, afinal estamos na primavera. Assim como os amores e as cores, os cheiros são mais possíveis nessa época.

Lembre-se do cheiro da infância, do cheiro de mãe, dos cheiros da casa, do jardim, da rua, da escola, da cidade e de outras cidades. Vamos descobrir o que está escondido atrás do mundo feito de imagens. Enquanto o paladar só distingue seis ou sete sabores, os narizes captam milhares de cheiros. Eu, por exemplo, guardo imagens e sons relativos a Ayrton Senna, mas a emoção vinda do odor dos pneus queimados do tricampeão de Fórmula-1 é algo inexplicável para os outros sentidos.

É isso que quero mostrar neste texto. Existe um mundo além da superfície. Imagem não é tudo. E há algo divino nisso tudo. Afinal, foi queimando ervas e invocando deuses por meio de fumaça que o homem descobriu o perfume. Vamos à origem da palavra: Per fumum significa através da fumaça. Diante disso, a maior invenção do homem é a roda, o fogo ou perfume?

O perfume revela personalidades, intenções, desejos e interfere no jogo da vida, influenciando o nosso estado de espírito. Podemos usar o poderoso sentido seja nas relações pessoais ou profissionais. Ao entrar pela narina, o mundo se esfumaça em aromas impregandos de mensagens que nos provocam sensações que vão do amor ao ódio.

É como se o perfume nos possibilitasse guardar um momento que se esvai rápido demais. Um beijo à luz da lua, uma criança correndo pelo bosque, uma volta de roda gigante, um gol de placa... Um gol? Guardamos em nossa cabeça um gol de Pelé, mas qual o cheiro de um gol do camisa dez? Lembro do cheiro de um gol de Rivaldo marcado da linha do meio de campo, com a vermelhinha do Mogi-Mirim. O cheiro que ficou é uma mistura da alegria e da surpresa nos olhos do meu pai. Eu não vi o gol, eu vi os olhos do meu pai vibrando, comemorando, gritando com mais um gol do carrossel caipira. E tinha um cheiro de pipoca, de picolé de maçã, de sol caindo na tarde.

Quero sentir o perfume do balançado cheio de graça da Garota de Ipanema, quero sentir a fragrâncias das notas do piano de Tom Jobim, quero sentir o cheiro de suas emoções, de sua inspiração. Desculpem o abuso, mas Jobim cheira à mata atlântica. Árvores fortes, mato fechado, macucos com seus ovos azuis-esverdeados. E qual o cheiro da voz de Maria Bethânia, que diz que nada como um cheiro para nos fazer sentir, viver, lembrar. Será o cheiro de todos os santos? Será o cheiro dos orixás? Será o cheiro da água de cheiro que a baiana leva na cabeça e lava as escadarias do Senhor do Bonfim? Quero sentir o cheiro daquelas escadarias, dos macucos, das árvores que não existem mais.

Tenho medo do cheiro da guerra, que funde a pólvora ao choro das perdas e ao prazer sádico dos conquistadores. Hiroshima explodiu, devastou, destruiu. Mas qual o cheiro da bomba-nuclear? Qual o cheiro radioativo que exala de seus sobreviventes? Qual o cheiro do poder? Qual o cheiro da moral, da ética, da responsabilidade e da falta de tudo isso? Qual o cheiro da desordem, da mentira, da corrupção? Dizem que a política tem mau cheiro, mas é preciso saber distinguir esses cheiros antes de ir às urnas. E é bom lembrar que urnas lembram o odor fúnebre dos crisântemos. A flor que enfeita a morte de nossas esperanças, de nossos sonhos. Ah! Qual o cheiro da morte? Quero cheirar o meu defunto pouco e sentir toda sua podridão. Qual o cheiro que infesta os narizes dos vermes que roem da nossa carne fria? Qual o cheiro da carne e qual o cheiro da fome? Da miséria? Da desigualdade? Será o cheiro do abandono, do pavor, do desespero?

Os livros religiosos citam a fumaça e o perfume dos rituais de purificação e de glorificação. O perfume está presente em todas as coisas, em todos os lugares, em todos os momentos. Não existe um bom churrasco sem o cheiro daquela gordura pingando na brasa; a casa ganha vida com o cheiro da vinda de um bebê... talcos, sabonetes, fraldas... o bebê, por si próprio, exala o cheiro de um mundo novo e a missa ganha mais fé com o cheiro do incenso. E por falar em igreja, todo mundo quer saber a cor dos olhos de deus, a textura de seu cabelo, que língua fala, mas ninguém nunca se perguntou sobre o hálito de deus. Quero ir mais longe. Eu quero me embrenhar no hálito de deus e desvendar o perfume de suas palavras. Qual o cheiro do Cristo pregado na cruz? Quero sentir o aroma dos véus de Nossa Senhora. Quero sentir o perfume do divino e do pecado.

Que a mulher amada seja como a última rainha do Egito. Vestida com essências aromáticas, Cleópatra seduziu o general romano Marco Antônio e conseguiu dele a promessa de uma aliança com Roma. Na época, as duas cidades eram inimigas. Cleópatra impregnava de odor de rosas as velas de seu barco e velejava, em nuvens de incenso, ao encontro do amante, como uma deusa em forma humana. A rainha egípcia colocou Roma aos seus pés ao caminhar deixando um rastro de rosas por onde passava e antes de se envenenar, banhou-se com as mais finas fragrâncias perfumando a sua morte.

Quero destilar a mulher amada em óleos e colocar pétalas moídas no meio do arroz com feijão de cada dia e temperar minha salada com mel perfumado e essência de flores e colocar néctar em minha bebida. Quero ser como Gaspar, o rei-mago das Índias, só para seguir uma estrela guia inebriado pelo perfume da mirra. Assim como Baco, o deus do vinho, eu quero adicionar ao néctar das uvas violetas, rosas e jacintos num buquê ideal e beber de uma só vez o perfume do mundo. Quero sentir perfume do romance de um livro de romance... Quero sentir o cheiro do amor proibido de Romeu e Julieta, o cheiro do medo entre a Bela e a Fera e o cheiro daquele espaguete que culminou no encontro dos lábios da Dama e do Vagabundo.

Como podem comprovar, os cheiros existem, estão presentes, mas são colocados em segundo, terceiro, quarto plano por nós. Atualmente estamos muito ocupados para nos preocupar com perfumes. Vivemos a sociedade da visão. A publicidade é imagem. O mundo nos é vendido por meio de fotografias. Depois, somos seduzidos pelos ouvidos. Pelo paladar. Pelo tato. O olfato foi deixado de lado.

Deparamo-nos com tantos quadros, tantas paisagens mortas, mas não somos capazes de sentir o cheiro da chuva, do mato molhado, da terra fresca, do sol e da lua, que giram giram giram em fragrâncias mil. Hoje, vamos nos fazer cegos e surdos, ao menos por alguns minutos, e cheirar o mundo e a nós próprios. Quem sabe assim, de perfume em perfume, seremos capazes de descobrir um mundo escondido bem debaixo do nosso nariz.


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