Daniel Campos

Sentimentaria


2008 - Prosa

Editora Auxiliadora

Resumo

Imprimir Enviar para amigo
31/08/2008 - Sorrio

No silêncio dos homens, no ventre da mata fechada, no brotar de um destino, sou nascente, sou rio. E querendo descobrir novos mundos, novos caminhos, novos povos, escorro corrente nas águas da minha cabeceira. Não podendo ficar parado, corro por entre montanhas, colinas, chapadas, florestas... Sou tocado pelas folhas das árvores que caem sobre minhas costas, pela língua dos animais que me tomam para si e pelas mãos humanas que me levam para longe, para longe de mim.

Do casamento do leito com a minha vazão, vão nascendo peixes, plantas, algas... Eu que era transparente quando nasci, vou correndo azulado, esverdeado, enlameado por uma estrada sinuosa. O meu correr guarda os mistérios do boto, o canto da iara e a vitória mais régia que já existiu. As crianças vêm brincar em mim, com suas bolas e bóias coloridas. Enquanto os homens me bebem vou apreendendo os costumes de cada povoado por onde passo. Sei falar muitas línguas, sei de muitas histórias, sei de muitos amores.

Por mais que as árvores me abracem com suas raízes, não fico... Eu vou. Vou mundo além. Nada me prende. Nada me impede. Nada me rende. Avante vou, eis a minha bússola. Eu sou a canção da esperança de muitos. Embora eu passe na solidão dos peregrinos. Vez ou outra, a lua vem se deitar comigo em meio a uma escuridão de sentimentos. Quilômetros depois, a encontro novamente. Nós vamos amando-nos em movimento, sem hora nem lugar. Não posso parar. Não posso voltar. Não posso estancar o pranto da terra, que me alimenta.

Gaia chora e eu corro por entre seus cabelos de terra. Ah! Sou o choro doce. Sou o verde das plantas. Sou parte do azul celeste. Sou guerreiro abrindo caminho, ganhando corpo. Outros rios menores, mais fracos, menos obstinados desembocam em mim e eu os carrego comigo. Com riachos, canais, córregos, ribeirões, igarapés ganho ainda mais força para ir para o sul ou para o norte, para o leste ou para o oeste... Como lágrima que escorre pelo rosto desconhecido, vou-me pela rosa dos ventos. Tem dias que me quebro e viro cascata, cachoeira, corredeira.

Passo por veleiros que fazem cócegas em minhas correntes. Passo por pescadores que tentam me fisgar em seus anzóis. Passo pelos mais de cem dentes de cada crocodilo que tenta me devorar. Passo pelas roupas das mulheres que enchem minha boca de sabão. Passo pelos nadadores corajosos e sem juízo que insistem em me enfrentar. Passo pelos mergulhadores que querem ver o que eu escondo. Passo pelos quem me olham e entreolham das margens. Passo colhendo o perfume das flores, o beijo dos pássaros e o lixo dos homens. Arrasto tudo comigo e me corto, e sangro e sofro.

Sou rio e rezo pelo milagre das nuvens. Entre minhas idas e vindas, meu serpentear pelo chão, faço a dança da chuva. Nada como sentir aquele polvilhar de Deus em minha pele d`água. Sou rio e tenho meus tempos de cheia e de seca. Ora sou só um fio, ora sou imenso que até penso não ter mais fim. E embora eu pareça soberano, tenho medo. Medo de morrer antes de encontrar meu destino. Mas mesmo trêmulo, tenho que seguir. Seguir pelos alagados, seguir pelo asfalto, seguir pelas torneiras... Quanto mais me dou, mais me querem. Em certos momentos, zango-me e me extravaso, enchendo ruas e casas com meu corpo caudaloso. Nas minhas águas ficam os sorrisos do menino que aprende a nadar em meus braços, os beijos dados e roubados na minha várzea e as lágrimas daqueles que perderam tudo para o meu curso.

Depois de horas, dias, semanas, meses... cansado de tanto navegar a mim mesmo, chega a hora de me entregar. Por um momento, dá vontade de parar e voltar a ser nascente. Um suor frio corre pelas minhas veias. Para me trazer de volta à realidade, gaivotas me beliscam. Depois dessa caminhada de fé, vem o medo de desaparecer para sempre na vastidão do oceano que me chama. Não há como resistir a sua sedução. Um rio tem que seguir em frente, sempre. E eu sou rio. Sorrio, respiro fundo e entro oceano adentro. Com gosto de sal na boca, eu me perco e me acho e, eu tramo e me engano e, eu morro e renasço enquanto passo de rio a oceano.


Comentários

Nenhum comentário.


Escreva um comentário

Participe de um diálogo comigo e com outros leitores. Não faça comentários que não tenham relação com este texto ou que contenha conteúdo calunioso, difamatório, injurioso, racista, de incitação à violência ou a qualquer ilegalidade. Eu me resguardo no direito de remover comentários que não respeitem isto.
Agradeço sua participação e colaboração.

voltar