Daniel Campos

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A capital do átimo ou o átimo da capital

Num átimo, os alísios desviam as naus com 1.500 descobridores comandados por Cabral. Num átimo, línguas portuguesas e tupis se misturam num mesmo beijo. Num átimo, a Ilha de Vera Cruz se veste de Terra de Santa Cruz que se tranveste de Brasil numa quadrilha à moda de Drummond. Num átimo, JK se sente desafiado a erguer a capital federal em pleno cerrado. Num átimo, Niemayer rabisca Brasília. Num átimo, a capital ganha as asas de um Lucio sem acento. Num átimo, os fabianos, sinhás vitórias e baleias de Graciliano Ramos se encontram com os severinos de João Cabral. Num átimo, suor e esperança na mesma argamassa da Esplanada. Num átimo, o concreto se alastra. Num átimo, malandros de contrato, gravata e capital, que nunca se dão mal. Num átimo, os poetas simétricos não rimam árvores tortas com praças de pedra. Num átimo, as flores do cerrado são colhidas nos camelôs da Catedral, onde, num átimo, encena-se um balé de anjos suspensos e propensos a milagres. Num átimo, o general Costa e Silva revira pelo avesso as bacias mais democráticas do país. Num átimo, o irmão do Henfil parte num rabo de foguete. Num átimo, gregos e troianos deixam-se levar pelo romantismo brega chick das fontes da Torre. Num átimo, estrelas salpicam e incitam e suscitam olhos candangos. Num átimo, o lago Paranoá vira praia, mar, oceano e se deixa povoar por biquinis, varinhas de bambu, jet sky, velas e barcos de néon. Num átimo, turistas se perdem no labirinto das tesourinhas. Num átimo, centenas de pessoas invadem seis pistas de piche, com tênis, cachorros, bicicletas, patins, velotróis e celebram o domingo. Num átimo, sol e lua flertam-se, olhos nos olhos, no céu esgarçado de Brasília. Num átimo, saboreia-se o churrasquinho de gato ou o frango esfumaçado das entrequadras. Num átimo, Dom Bosco é uma profecia, uma visão, um santuário. Num átimo, os fossos dos palácios se transformam em espelhos d?água. Num átimo, a torre Eiffel se transforma na Torre de TV. Num átimo, os jardins suspensos da Babilônia ganham à assinatura de Burle Marx. Num átimo, as pirâmides do Antigo Egito se transformam num templo ecumênico. Num átimo, Garrincha vira um estádio de arquibancadas tortas. Num átimo, a Catedral se transforma num feixe de trigo. Num átimo, o Paraguai cabe numa feira. Num átimo, três arcos olímpicos abraçam a terceira ponte. Num átimo, para se chegar a Villa-Lobos é só descer as escadas do Teatro Nacional. Num átimo, a Praça dos Três Poderes ganha a simbologia e a hemorragia das pombas. Num átimo, zebrinhas vermelhas cortam a cidade. Num átimo, o vocabulário ganha verbetes cartesianos: SQS 400, QL 2, CLN 115, SCS, SDN, SHLN, MI 3, SRTVS, SIA. Num átimo, Brasília se torna fria lírica úmida distante de uma forma tão atimica. Num átimo, crianças brincam debaixo do bloco. Num átimo, amoras, mangas, acerolas, goiabas e tamarindos perfumam as quadras. Num átimo, o amarelo e o roxo dos ipês roubam à cena do branco de Niemayer. Num átimo, comemora-se a primeira chuva de setembro. Num átimo, invasões de luxo e de miséria. Num átimo, a estrutura do pós-modernismo se quebra nas quebras da Estrutural. Num átimo, Glauber Rocha, Pedro Almodóvar e Frederico Fellini caminham pela Academia de Tênis. Num átimo, foliões colecionam bocas na micarecandanga. Num átimo, a W3 se transforma em L2 num grande circular. Num átimo, corpos submergem e imergem em piscinas de água mineral. Num átimo, nasce uma lei e um fora-da-lei. Num átimo, o vermelho do pau-brasil mancha o chão do Areal e as curvas do Blue Tree Alvorada. Num átimo, Ceilândia e Cinelândia se confundem. Num átimo, cidades deixam de ser satélites para serem planetas. Num átimo, alguém ama e mata em um setor, seja comercial, bancário, de hotéis, de mansões, de autarquias, de diversões ou de indústrias gráficas. Num átimo, come-se tapioca, pastel, pato no tacupi, vatapá, bombom de cupuaçu e algodão-doce na mesma feira. Num átimo, o Brasil passa a ser a capital de Brasília. Num átimo, a solidão nos cerca. Num átimo, a equação distância/ tempo se materializa e tem-se a impressão de que os alísios do Paranoá trarão a esquadra de um novo Cabral. Num átimo, novos descobridores da capital do átimo ou do átimo da capital.


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