Daniel Campos

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Dama de azul

E do teatro vazio nasce uma dama de azul. Do silêncio da espera, faz-se o desespero. Da claridade em breu, surge o azul. Um spot de luz, feito um assassino, segue aquele corpo como se seguisse sua próxima vítima. Um corpo envolvido de azul. Uma blusa azul deixava os braços expostos, insinuava a leveza do colo e até desvendava um pouco das costas daquela criatura sem nome. Os mistérios e as memórias presentes à flor da pele fresca.

Do nervosismo, encena-se o drama. Das mãos aflitas, dá-se o consolo inesperado. Uma saia azul desnuda com extrema sutileza as pernas nunca dantes vistas de tal maneira. As sombras, os traços, a geometria inspiram olhares. Da face umedecida pelo suor frio do medo, unge-se a compreensão (não que ainda não a compreendesse, mas agora ela está com os sentimentos em carne viva; sentimentos que afloram como criaturas nuas em alma frente a minha palidez de palavras).

Sobe e desce escadas intermináveis. Inquieta, anda e desanda pelos confins de ruas imagináveis. Em seu andar, deixa-me como, onde e quando quer. Tem o corpo estático, aparentemente morto. A vida se concentra nos olhos que a viam de maneira sublime. Os nervos (que não eram de aço como os de Lupicínio Rodrigues) estouram e vertem o espanto (uma hemorragia calada que agoniza na espera de uma nova aparição azul). Os olhos apreensivos não enxergam mais nada, apenas a procuram na tentativa de vê-la dentre toda a escuridão presente. Talvez por conhecer dela os passos, a respiração, o aroma, o balanço e a temperatura do corpo, ou, simplesmente, por sentir a presença dela os olhos conseguem essa proeza. O azul em meio à escuridão. Uma relação entre imagem e espelho, de saber que o seu reflexo está lá. E, nesse momento, o meu reflexo, convergente ou convexo, é azul.

Eu, reflexo dela. É uma mistura de química e espírito, difícil de entender na teoria. Os cabelos soltos escorrem pelo pescoço e repousam sobre o ombro direito (chegando a cochilar). Os fios ondulados parecem somar tantos tons (como se fossem pintados um a um por Portinaris minimalistas). Em cada tom, em cada fio, um murmúrio único. A garganta seca engole goles e mais goles de um drinque azul. A beleza se anuncia cada vez mais bela. Uma beleza que vai além da superficialidade do impacto inicial e caia numa profundidade sem limites. Uma beleza nova a cada instante, partícipe de uma evolução constante. Parece cada vez mais perfeita (por instantes, chega a cruzar as barreiras da perfeição). Uma beleza que leva os mortais comuns a confundir admiração com devoção.

Mas eu sou coadjuvante do primeiro e dos demais momentos daquela criatura. Em uma relação inversamente proporcional quanto mais me cubo de anonimato, mais aumento a sede de desvendá-la. Ela, uma nota dissonante, rara e indecifrável por inteiro. E no ventre da dama de azul, fecunda-se o azul. A mim, entre o sonho e a loucura, resta enclausurar essa chama azul em meu corpo e cultivar assim aquela criatura com todo o afinco, com todo o zelo, com toda a espera.

As luzes se ascendem e (mesmo assim) não ofuscam a mulher de tons azulados. Quando sobe ao palco, sob a um altar. São momentos tormentos sentimentos azuis depostos expostos a postos no tablado. De repente, ela se joga nos braços da calmaria, tece alguns sorrisos ainda tensos e esboça pedir uma mão em seu rosto, dizendo em gestos: acabou, calma, acabou... O teatro é abandonado pelos vultos cegos ao azul e então, na solidão das cadeiras, ela vem ao meu encontro. Quero falar alguma coisa, mas ela me embriaga de azul e me embarga os pensamentos.

Eu sufocado de azul. Eu calado de azul. Eu devassado de azul. Ela no azul dos aplausos. E antes de ser levada pela chuva e pelo adeus que passa a nossa volta, partimos para além das palavras. Partimos em olhares que dizem, juram e se acariciam sem serem percebidos ou fingindo não o serem. Partimos em olhares. Os meus olhos possuídos de azul tingiam-se, corropiam-se e feneciam-se.

Do encanto, encena-se o trágico. Do lírico, rompe o desespero. Como uma cinderela contemporânea, ela foge. Mas não há carruagem lá fora, nem ponteiros chegando perto da meia noite nem uma madrasta tirana. Há só a chuva que vai tirando de seu rosto de seu corpo de sua alma a mentira da atriz. A chuva que a descolore e revela os borrões de uma dama borralheira.


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