Daniel Campos

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21/03/2010 - Domingo, por Liberato Barbosa

Em algum lugar deste domingo, seu Líbio deve se levantar um pouco mais tarde. Depois da semana toda madrugando para tirar leite, hoje aproveitou um pouco mais a cama. Bom para o corpo exausto da lida. Dos seus 77 anos de vida, setenta deles passou trabalhando na roça. Como é bom poder ficar na cama sem o risco de seu pai lhe jogar uma balde de leite no rosto como punição para seu atraso. Perdia hora por culpa dos bailes movidos a sanfonas e lampiões e das inúmeras voltas na Praça da Matriz flertando com as moças que, aquela época, giravam no sentido contrário aos moços.

Como não choveu esta madrugada, não será preciso correr ao sítio para ver os possíveis estragos de ventos e granizos. Pode ficar por mais um tempo tranqüilo entre os lençóis. Também não geou. Estamos longe do inverno. Isso é bom. Pelo menos assim ele não tem que chegar antes do sol para queimar pneus ou serragem ou ainda irrigar toda a plantação para impedir a ação das geadas. Logo depois que casou, há mais de cinqüenta anos, deu uma geada tão brava que queimou toda lavoura. Perdeu tudo em um tempo que já tinha tão pouco. Como presente de casamento, seu pai lhe dera alguns alqueires para tocar e seu sogro, algumas sacas de arroz e um trator velho.

Tanta estrada depois, não tinha do que se arrepender. Se pudesse começaria tudo outra vez. Se tivesse nascido árvore, seus frutos teriam sabor de sonho. Como gostava de sonhar. Nesta noite sonhou que tinha finalmente ganhado na loteria e comprado as terras dos sítios vizinhos ao seu, recompondo assim a fazenda de seu pai. Sonhou que desfilava com uma caminhonete a diesel e que tinha podido ajudar todos os seus amigos. De fato, quem resistiu no campo em pequenas propriedades ao longo desses anos todos precisava de ajuda. E ele sabia como ninguém a dureza daquela vida. Afinal, ele viveu a transição do foco da roça para a cidade. Ele era de uma geração que experimentou a fartura e as amarguras do campo.

Depois de uma saudade doída, sabe que hoje, ao se levantar, vai encontrar Adélia na cozinha, escutando modas de viola no rádio. Depois de sair da missa das sete, ela havia passado na venda e comprado mortadela e aquele pão bengala que ele adorava comer as pontas. Eis que então se lembrou dos salames que colocava para defumar na cozinha e do pão sovado e depois assado no fogão à lenha. O cheiro do café, forte e doce, já chegava ao seu quarto. Nesta hora, lembrou do cafezal que um dia já se formou em seu sítio. Lembrou mais uma vez de seu pai, agora socando os grãos maduros de café num pilão de madeira que se perdeu no tempo.

Acordou com muitas lembranças, mas sem saber ao certo a data. Sabia apenas que era domingo. Dia de se barbear, de almoçar com a família, de contar causos. Onde será o almoço? Em sua casa na cidade, ao redor da imensa mesa de madeira cunhada por suas mãos, ou no sítio, entre uma churrasqueira de tijolos que ajudou a construir e o lago que foi feito ao seu mando. Que horas são, pergunta ele? A essa altura quantos trens já haviam passado cortando suas terras, suas memórias. Ao menos ali estava protegido dos riscos e perigos diários que vivia. Até seus pés estavam quentes. Nessa hora, engole em seco lembrando os tempos que tinha de acordar de madrugada e, sem dinheiro para um sapato, saia ao pasto descalço para buscar o gado no mangueiro.

Talvez já seja hora de levantar, de tomar um banho, de ficar perfumado. Hora de pentear o bigode, o topete, de colocar roupa de domingo. Mas a cama está tão boa. Mas era preciso levantar. Será que já compraram a carne do churrasco? Sua boca se enche d’água ao se lembrar do gosto das carnes de antigamente, dos garrotes que criava no milho e capim. Para onde foram aqueles bois? Sombroso, Estrela, Uberaba... Ainda dava tempo de ter uma nova boiada branquejando pelo campo. Mas e se Adélia tiver feito polenta com frango? A essa altura se lamentou pela peneira de fubá ter enferrujado na tuia e lembrou que precisava fechar um buraco no galinheiro que havia esquecido. Era época de lagartos.

Desde ontem não tomava remédio. Hoje era domingo, dia de tomar uma cervejinha, uma caipirinha feita de limão galego. Pena que não existia mais a inglesinha, aquela cerveja escura e forte que ele tomava quando vinha entregar leite na cidade. Pena que não existia mais as pingas de alambique. Pena que já não existia mais tanta coisa boa. Mas ainda havia muito a viver e a comemorar. Ainda havia muitos motivos para se levantar daquela cama. O colchão estava tão bom, macio. Recordou-se de um tio que guardava dinheiro no colchão. Lembrou-se dos colchões de palha de milho que fazia. Lembrou-se dos cochilos que dava à sombra de um bom e velho abacateiro.

Olhando para a fronha do travesseiro lembrou-se dos lenços que sua mãe colocava na cabeça para prender o cabelo. Mulher tão boa e que havia sofrido tanto nas mãos de seu pai. Mas hoje não é dia para lembrar coisas ruins, doloridas. Afinal, hoje é domingo. Dia de seguir procissão, dia de colocar um pelego colorido no lombo do cavalo, dia de limpar as unhas tingidas de terra, dia de esfoliar as mãos ásperas com areia e detergente. Hoje é domingo, dia de saudar os conhecidos que passam na frente de sua casa. Hoje é domingo, dia de pescaria e de histórias de pescador.

Hoje é domingo, dia de dançar um bom arrasta-pé. Hoje é domingo, dia de fazer planos. Hoje é domingo, dia de dizer o amor pelas pessoas. Hoje é domingo, dia de tirar um belo cochilo depois do almoço. Hoje é domingo, dia de louvar os santos. Hoje é domingo, dia de mostrar os seus feitos da semana. Hoje é domingo, dia de ser paparicado. Hoje é domingo, dia de dar descanso às botinas. Hoje é domingo, dia de inventar alguma coisa nova para fazer. Hoje é domingo, dia de ser o personagem principal do espetáculo.

Hoje é domingo e, por isso, é dia de se levantar assoviando. Assoviando feliz à vida que ele sempre fizera questão de brindar aos domingos.


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