Daniel Campos

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Mais severinos

Joelhos ao chão. Olhos febris buscando algo além do entardecer azulado. Mãos se separando, deixando escorrer a terra vermelha. Não era uma prece pedindo chuva ou uma boa colheita, tampouco um ato de agradecimento. Era apenas um homem, de pele queimada pelo sol e de chapéu de palha, perdido na sua paisagem, despedindo-se da própria vida.

A porteira do sítio que se fechara em sonhos foi obrigada a se abrir ao progresso. Os cães ressoando no terreiro, as galinhas cantando nos ninhos, os gatos dependurados na carreta, a vaca leiteira mugindo ao fundo, o homem velando toda aquela pasmaceira, todos permaneciam incrédulos. As árvores, o arado, a túia, o poço... Tudo daria lugar ao progresso com seus caminhões, seus concretos, suas indústrias, seus aviões, sua desordem, seus homens feitos de máquina. Como aceitar outros braços cuidando daquele lugar, a traição cega, o estupro da terra.

O homem, feito de sangue e terra, nasceu como quem nasce da terra, alimentando-se naqueles seios de torrões fartos e vermelhos. Homem que quando criança fazia do sítio o seu mundo de fantasias. Largou os livros, os estudos para se doar a terra. Galopava, carpia, pescava, arava, caçava, dançava, plantava... vivia. Homem que se casou, teve filhos, netos e mesmo com o passar da idade continuava a empunhar a enxada e remexer aquela terra, como quem remexia um baú de lembranças.

Quantos os momentos aprisionados naquelas paredes de outros séculos, naquele solo sagrado? Quantas as chuvas rogadas e observadas daquela varanda? Quantas as lenhas que queimaram embalando histórias? Quantos os bailes dançados naquela túia. Quantos os calos, esses já misturados às linhas das mãos? Quantas as noites mal dormidas na espera do parto de uma novilha, de uma leitoa, de um filho? Quantas velas, lampiões, lamparinas fizeram companhia aqueles olhos perdidos em estrelas, alegrias e lágrimas. Momentos construídos por aquele homem. Momentos construtores daquele homem. Momentos que agora são tomados pelo progresso selvagem que rasga as páginas escritas com terra, aplaudido pelos inconscientes urbanos.

Hoje, o homem de traços aflitos, definha-se diante de sua fraqueza social. Observa-se e engole o choro calado. Não prevê mais a chuva, não dança no silêncio da túia, não dorme pensando em ter um porque para acordar, não sonha mais com as assombrações, não se perde mais em estrelas... Apenas esparrama o olhar pela terra, pelo pomar, pelas construções pensando nas frutas que não poderá colher, no caminho que não irá mais fazer, na vida que deixará de viver. Ele que sempre quis a morte naquele pedaço de chão. Um pedaço de chão que aprendeu a chamar de vida.

O homem, inconsolado, ajoelha na terra como quem implora o seu perdão. Perdão por toda aquela ilusão depositada no ventre da terra, dia após dia. Talvez o sonho tenha sido demais. Ajoelha, segura a terra nas mãos, beija-a e a devolve ao chão. Sente nos lábios o gosto de uma vida inteira. O homem se levanta, a alma sangra. O homem se levanta e se junta a histórias semelhantes. São outros tantos severinos que deixam a casa, a terra, os sonhos e seguem com as vidas secas, com as pernas cansadas e com os olhos úmidos.


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