Daniel Campos

Imprimir Enviar para amigo
Menina de ipanema

Os óculos de sol pairados sobre o cabelo davam o tom de informalidade não só a quem os usasse, mas à paisagem como um todo. Havia mais guarda-sóis do que sol naquela falta de praia. Mesmo assim, os óculos de lentes arredondadas continuavam lá. Quem sabe escondessem olhos tão negros quanto eles ou um tom de oceano. Oceano que não havia ali. E se fosse negro, talvez cometas passassem por ali. E se oceano, ondas dariam outro ritmo àquela tarde recém-nascida.

Um ritmo que quando viesse nos afogaria e quando fosse embora, nos arrastaria. Bailaríamos feito netuno e iemanjá. No entanto, quando tudo parecia indicar moda praia, seus pés pisavam em sandálias de salto fino. Embora o verão acalorasse as cores, óculos, cabelos e sandálias pintavam-se de preto. Daquele jeito, ela não cairia na piscina nem debruçaria seu pouco decote na churrasqueira. Não falava, não jogava, não beijava, não dançava, não desmaiava. Embora nem por um segundo que fosse estava sozinha.

Estava sempre agarrada à mãe, ao pai, a uma amiga, a um tio, a uma irmã, a um cachorro chocolate. Sempre acompanhada. Sempre com uma tonalidade de riso em seus lábios. Assim como a sandália, seu rosto tinha traços finos. Mas uma brisa, vinda na boléia de um caminhão, professava que sua plástica era o que menos importava naquele momento.

Cumprindo a profecia, ela ocupa o lugar do violinista profissional que se apresentava até então. Pega o violão com toques de intimidade, acomoda-o entre seus braços e pernas, como se fosse o namorado que lhe faltara naquela festa, e o explora musicalmente. E por que não dizer sexualmente? Suas unham sangram o mi, o fá, o ré das cordas de aço num amor primitivo. Naquele momento, as análises das últimas eleições, o cheiro do feijão tropeiro, os olhares perdidos, os drinques de abacaxi, os mergulhos na piscina, a maminha recheada, a cerveja estupidamente gelada, uma gente que ia chegando e saindo e as pingas com uva davam lugar a uma menina que cantarolava Ipanema.

Seguindo a tendência da sua boca e do seu sorriso, a tal garota caminhava suavemente pelos ares daquele sábado quente. Caminhava à procura de um mar. E uma multidão de marmanjos, sob o timbre de um cartório, jurava que seu nome era mar. E quem não conseguia ser mar, era marujo, capitão, pirata e até papagaio. Podia cantar tantas canções, mas cantou aquela ?láraraláraralá?. E não era uma reprodução qualquer. Era uma recriação com todo o romantismo necessário. Suas pernas sobrepostas. Onde quer que estivessem naquele sábado, Tom e Vinícius deviam estar bêbados daquele balançado. Havia quem nem percebeu que ela estava ao microfone, quem aplaudiu e quem pediu bis.

Mas foi apenas uma música. Uma música que reinventou à tarde. Sem estardalhaços, deixou o violão, o microfone, o banquinho e voltou para a festa. Os óculos escuros continuavam escondendo a cor exata dos seus olhos. E embora o mar carioca estivesse a mais de dois mil quilômetros daquela menina, aquele cenário feito de concreto e aço ganhou um quê de Ipanema.


Comentários

Nenhum comentário.


Escreva um comentário

Participe de um diálogo comigo e com outros leitores. Não faça comentários que não tenham relação com este texto ou que contenha conteúdo calunioso, difamatório, injurioso, racista, de incitação à violência ou a qualquer ilegalidade. Eu me resguardo no direito de remover comentários que não respeitem isto.
Agradeço sua participação e colaboração.

voltar