Daniel Campos

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Mesmo fora de moda, bom-dia

Hoje, o dia nasceu sem dizer uma só palavra. Não sabia se redondo, quadrado ou triangular, porém o sol começava a surgir por entre nuvens desbotadas. O cheiro de pão sovado, o cheiro de café escapulindo do bule, o cheiro frio do orvalho... Aromas que iam como vinham, sem avisos, no de repente de costume.

O homem, deitado na sarjeta, que até ontem era um bêbado, hoje não se sabe o que é. Acorda sem espelho por perto e se vai sem sequer ver o rosto que o novo dia havia lhe doado. Vergonha ou, descrença ou qualquer outra coisa que o faça abaixar a cabeça e continuar andando em busca de um rosto ou de um copo de cachaça.

Alguns acordam para começar uma caminhada física. Andar porque o médico recomendou, porque não sei quem disse que faz bem, porque querem emagrecer ou conversar, porque, simplesmente, querem receber um bom-dia. Mas o dia hoje se faz calado. Andam, esbarram-se e permanecem mudos. Não há bom-dia.

Não há barracas nas feiras. O silêncio chega estranho aos ouvidos que querem sentir algo a mais nas vozes, sentir um afeto, um balanço, um não sei o que, que traga prazer ao se escutar. O sol se levanta enquanto as nuvens embaçam ao fundo. O pão, o café e o leite ficam sem gosto se ninguém lembra dos campos de trigo, das mãos que colhem o café, das vacas nos pastos. A solidão dos campos, das mãos, dos mugidos. Mais e mais silêncio.

O dia com tanto tempo ainda de sol e a correria. Todos se encontram e ninguém se acha nas ruas que se acabam sem começo. E já há um morto que mal viu o dia; uma mão que pede e maldiz o dia; alguém que nem sabe se chove ou se o dia é azul; um casal que acorda sem beijos; alguém que nem dormiu embalado por uma particularidade; alguns pés que andam, como andaram ontem e anteontem; alguém que toma comprimidos para anestesiar uma dor que nem sequer existe; uma criança que não encontra aquele mundo de conto-de-fada; um povo que nem acorda, continua num sono que não tem hora para acabar.

Uma multidão que não sabe se vai ou se vem, vai de acordo com o vento, vem de acordo com a maré. Poucos se deixam sentir o vento em riste, indo contra o vento, quebrando ondas e ainda com um sorriso em face. Os rostos são fechados, sérios, calados, egoístas, covardes. Rostos que sufocam os poucos que ainda carregam um sorriso de bom-dia. Saudades daquele sorriso.

Saudade daquele sorriso, daquele bom-dia, daquela voz pela qual se acordava. Àquela voz que se faz doce e feminina no mais completo sentido de prazer. E então, o dia acontecia com todas as promessas que lhe eram de direito. Hoje, o bom-dia anda démodé. O dia começa com um sol quase frio. Um sol que se faz triste porque é a despedida de uma lua.

Então o sol se faz sol, quente e seco. As carrancas se abrem em sorrisos. Quando, amadas ou amantes, as criaturas conhecem a razão do nascimento do dia é mais fácil ter um bom-dia. E quando o bom-dia se estende a um boa-noite, nem menciono o boa-tarde, é porque a lua cheia nasceu redonda, grávida de saudade.


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