Daniel Campos

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Metamorfose

Ela chega sozinha. Toca a campainha e quando se dá conta de que nem a mãe nem o irmão nem a tia nem a irmã nem a governanta estavam ali, a solidão perde força para outra sensação não menos devassa. A maçaneta dança nos olhares apreensivos da menina ao tempo em que a porta a enclausura em medos desconfortáveis. Os olhos daquele que abrira a porta lhe fazem querer ir embora a qualquer preço. No entanto, sobe em sua garganta uma vontade de ficar com tal intensidade, que desafina as cordas vocais e de sua boca não sai nada além de um miado. Não tem decotes ou fendas, mas sente-se nua diante daqueles olhos engessados em seu corpo.

Ela tentava puxar um ou outro assunto, mas as palavras lhe faltam. Ele não diz nada, só a observa. Mas seus olhos esperneiam e gritam tão alto a ponto de calar aquela menina que há tempos se equilibrava entre o pudor e o desejo. Ela tem vontade de correr, quebrando paredes e vidraças como aqueles super-heróis dos desenhos que ainda assistia. Mas a vontade de ficar ali é inviolável. O duelo entre instinto e moral nunca se fizera tão presente em sua cabeça. E aquilo tudo lhe dói de prazer.

O prazer se distende quando ele se aproxima e a toca como um vento fagueiro que levanta as saias das moças. E aquelas mãos com tantas linhas percorrem o corpo. Linhas do tempo, da vida, da sorte, do destino, do desejo. As linhas promovem desenhos inusitados à geometria cotidiana quando se emendam as linhas do sexo. O vento venta mais forte e rubra sua pele. O vento venta mais forte e lhe tira gemidos. O vento venta mais forte e lhe treme as pernas e lhe arrepia e lhe dá arritmia e lhe faz cheirar não o cheiro das fadas e das flores primaveris, mas o cheiro de uma fêmea correndo em plena savana. E o vento venta forte e domina e tomba e destrói e ameaça trovões e relâmpagos. Do outro lado, se é que existe lado nesse momento, ameaça uma reação, algum obstáculo, algum impedimento, mas nada faz. Ela queria estar ali naqueles braços. As amigas mais próximas e também as mais distantes já sabiam. Pudera, ela escrevia o diário em seu próprio corpo.

Eram linhas e linhas de seus sonhos mais íntimos tatuados em seu corpo. Seu futuro tatuado com agulhas e tinta fresca. E eram nomes, inscrições, desenhos. Seu corpo era explorado como as paredes de uma caverna pré-histórica. E, não era de assustar que diante dela as vontades surgissem com o furor de tal época. Cada centímetro de pele tinha algo a revelar. Em seu corpo, mapas do tesouro. Em seu corpo, o caminho do paraíso. Em seu corpo, as palavras certas para exorcizar e chamar qualquer demônio. Exorcizar ou chamar, dois verbos tão distantes e tão perto em seu corpo.

Ela já havia fugido tantas vezes. Mas fugia de si própria. Ela queria, mas precisava ser pega a força. Seus sonhos mais puritanos eram dilacerados pela espada de seus sonhos pecaminosos. Suas palavras ingênuas cediam espaço para um vocabulário chulo, que lhe dava brotoejas na língua. Seus olhares de flor se desfolhavam pelo sabor erótico de um espinho. Um erotismo que combinava plástica e sentimento em doses alucinógenas.

Daquela mulher cheia de padrões socialmente definidos, nascia uma mulher de fato. Aliás, daquela mulher desfalecida e tomada pelo suor dos sonhos e dos pesadelos de sua própria feminilidade, nascia uma nova ética. Uma ética muito mais mulher. E o tempo, aquele amante mais que inconstante, sabia disso e, com toda sua decência, tira-a dos braços e a deixa sozinha para que goze, por completo, da sua metamorfose.


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