Daniel Campos

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O silêncio que não se ouve

Grita ao longe uma voz muda pedindo silêncio. Quem corria pelas ruas, em carros, trens, ônibus, ou com os próprios pés, antes mesmo de o dia abrir suas portas, ou melhor, de amanhecer, voltam seus olhos aos relógios e se calam por um minuto. Alguns mais, outros menos, mas uma fração de segundo emudece nos corpos com vida.

Milhões e milhões se envolvem num luto imaginário. Os que amanhecem, os que cultivam o sono e os que ainda não dormiram. A todos é imposta à dor da perda. Ao contrário dos romances, o céu de São Paulo não se veste de preto, tampouco derrama um choro esquivo. O sol nasce como na maioria dos dias e não surge fosco, esboça-se simplesmente sol. Mesmo com a rotina dos astros celestes sendo cumprida, a cidade insiste em parar.

Aquela voz muda que pedia silêncio ganha o som da mídia. Mídia que anuncia luto oficial, que anuncia a morte de Mário Covas, que anuncia tristeza... Mídia que nos incita a ir às ruas, com faixas, com lágrimas, com semblantes inconformados. Irmos às ruas e encenarmos algo que desconhecemos dentro de nós.

Morre Covas, político, deputado, senador, governador. Ontem morreram tantos e dentre esses morreu João. João não sei do que, não sei de onde... Só sei que João das letras. No velório do político, cortejo em carro aberto do corpo de bombeiros, batedores, cavalarias, tiros de fuzis, honras e mais honras. No velório do professor houve tristeza, mas já dizia o poeta que ela não tem fim. Talvez então só mais uma tristeza. Mas Covas era um lutador, lutou contra todos e contra a morte. João também não queria morrer, não teve tantas armas para lutar na batalha final contra a morte, a qual já havia travado inúmeros duelos. Como era difícil sobreviver com o salário de professor do Estado. O enterro de João não teve a presença de governantes, de personalidades, de cardeais,..., tampouco a narração da Rede Globo. João teve ao seu lado o dono do bar onde afogava suas mágoas, um padre apressado que mal tinha paróquia, os braços fortes de quatro amigos que restaram e o choro dolente de Rosa, sua mulher. Covas queria governar, ser presidente, fazer história... João queria viver.

A mídia brada Covas como ídolo. Ídolo de ninguém ou de poucos. João também era o ídolo de seu filho. O menino sempre dizia que quando crescesse queria ser igual ao pai. E também era exemplo para alguns alunos, mais ou menos carentes. Agora a mesma terra que abraça Covas, tem João entre seus braços. Por essas e outras, não entendo a voz pedindo luto por não sei quantos dias. A nação deve chorar pelos mitos, pelos deuses, estes são merecedores da nossa tristeza conjunta. Calamo-nos em Garrinchas, Betinhos, Sennas, Jobins e outros que pareciam não pertencer a essa vida.

Covas era homem, assim como João. Covas era político, mas e daí? Tantos o são. Para sermos deuses precisamos ser mais que homens, irmos além do ato e do caráter que sepulta o homem em seu próprio corpo. Covas era conhecido, famoso, poderoso. Injustamente, João não o era. Covas tinha multidões. João, alunos. Flores e mais flores sobre o túmulo de Covas. Algumas pétalas sobre a cova de João e o silêncio dos mortos. Covas chorou diante de todos, câmeras e microfones. As lágrimas de João só conheciam as mãos de Rosa. Ambos eram humanos. Ambos são lembranças.

A voz que pede luto não diz onde estão as bocas que reprovavam o político, os pés que marchavam em passeatas contra o seu governo, os braços que se cruzavam em greves, as mãos que arremessavam ovos, a revolta que o agredia com uma bandeira. Onde estão essas bocas, esses pés, esses braços, essas mãos,..., esse brio que defendia os direitos comuns a qualquer cidadão. Espero que não sejam tão hipócritas para santificar o político. Agora já há tantas vozes. Escuto a voz que pede o silêncio de luto em respeito ao ser humano. Eu darei alguns instantes do meu silêncio... O mesmo silêncio que ontem dediquei a João. O silêncio que não se ouve.


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