Daniel Campos

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O sonho acabou

Enquanto degusto uma boa média composta por um pãozinho francês de cinqüenta centavos e uma xícara de café inflacionado, fico sabendo que o mexicano Carlos Slim ultrapassou Bill Gates na lista dos mais ricos do mundo. Mas o que me interessa saber que o líder do clube dos ricos tem 67,8 bilhões de dólares contra 59,2 bilhões do segundo colocado? Que apenas um quarto dos países do mundo é mais rico do que a fortuna de Slim? Que o patrimônio desses dois é maior do que a soma de todas as riquezas produzidas em Cingapura, que é um dos badalados tigres asiáticos? Resposta: tudo.

Uma pesquisa divulgada no final da semana passada apontou que os brasileiros ricos ficaram ainda mais ricos nos últimos anos. Acredite se quiser: mesmo com cinco anos de um governo comandado por um torneiro mecânico que diz priorizar uma política para a população de baixa renda, os mais ricos estão mais ricos. E por conseqüência, o abismo social vem crescendo. Nem o tão famoso Bolsa-Família conseguiu impedir a distribuição irregular de renda em um país onde os 10% mais ricos têm gastos 10 vezes maiores que os 40% mais pobres. Que Brasil de todos é esse?

Que Brasil é esse em que a política ou a politicagem - chame como quiser - beneficia um clube que usa Prada, Ferragamo, Ermenegildo Zegna, Dolce-Gabbana, Armani, Chloé. Em um país onde quem mais lucrou em 2007 foi um banco (Brasdesco) e, diga-se de passagem - um lucro histórico - há mais mulheres usando bolsas de sete mil reais a unidade pelas ruas da elite. Enquanto isso, em um mundo não tão distante, há semáforos cheios de crianças de rostos sujos e mãos estendidas pedindo centavos. Centavos de esperança, centavos de sonho, centavos de vida, ou melhor, de sobrevida.

Entre um gole e outro do meu café amargo, ligo a televisão e descubro que estamos no paraíso. Estou com uma preocupação à-toa, afinal a nossa economia estabilizou-se, a inflação está sob controle, as dívidas nacionais estão equacionadas, os brasileiros estão mais confiantes, o mercado financeiro está aquecido, o dólar está enfraquecido. E trilhando o caminho de Slim e Gates, levantamentos recentes mostram que o Brasil tem 130 mil milionários. E esse clube não fica restrito só ao Sudeste e ao Sul, há cada vez mais milionários no Norte e no Nordeste. O Brasil está virando uma Disneylândia. Tudo perfeito, todos felizes.

Mesmo a contragosto de Hugo Chavéz, os brasileiros são os mais ricos da América Latina, com uma fortuna conjunta estimada em quase 600 bilhões de dólares. Nos últimos anos, o país saltou da 18ª posição para a 14ª no ranking dos países com mais milionários. Na comparação com os países em desenvolvimento, o Brasil deixou para trás a Índia e a Rússia, perdendo apenas para a China. E dá-lhe o governo da igualdade social, que colocaria três refeições diárias no cardápio do brasileiro. Pelas calçadas, mãos de todos os credos e de todas as raças e de todas as idades e de todos os sexos se estendem pedindo, chorando, implorando por um pedaço de pão.

Se esse cenário estava ou não no programa ou nas utopias de um partido formado por trabalhadores isto é outra história. O que importa é o lucro a qualquer custo. Meus caros, o socialismo só interessava enquanto discurso de palanque. Na prática, o que vale mesmo é money money money. Segundo cálculos da revista norte-americana Forbes, há 946 pessoas com mais de US$ 1 bilhão em todo o mundo. Eram apenas 140 em 1986. Já há um número de brasileiros considerável nessa lista. Nunca houve tantos super-ricos e fortunas jamais foram feitas tão rápido. Mais curioso do que esse crescimento é a troca de camisa de um grupo de pessoas auto-intitulado diferente de tudo e de todos. Quem falava em nome dos pobres agora trabalha para o clube dos ricos. O Brasil está cada dia melhor para os grandes agricultores, para os grandes produtores, para os grandes executivos, para os grandes exportadores, para os grandes exploradores, para os grandes...

O discurso de "Que País é Esse" de Cazuza é tão válido quanto o de Zeca Pagodinho - "Você sabe o que é caviar? Nunca vi, nem comi eu só ouço falar". O Brasil dos milionários é um mundo à parte. Seus habitantes não têm contato com pobres, nem mesmo com a classe média. Vivem em bolhas. Sejam as bolhas de condomínios fechados, de vestidos de luxo, de carros blindados, de costumes importados, de viagens por paraísos turísticos e fiscais. Um mundo no qual não há fronteira entre o que pode e o que não pode ser adquirido. A identidade e o caráter passam a ser medidos em algarismos. O país das fortunas individuais é filho da união entre novas tecnologias, globalização, mercados financeiros e uma política de favorecimento. Ora, vamos raciocinar e quebrar esse blábláblá eleitoreiro: se a economia está crescendo tanto para ricos quanto para pobres por que há mais milionários e mais miseráveis a cada dia?

Não é aceitável, do ponto de vista ético, que em um mundo onde duas em cada cinco pessoas vivem com menos de seis reais por dia existam tantas fortunas privadas em meio a uma multidão de miseráveis. Afinal, entre as grandes fortunas e crianças famintas há uma distância vergonhosa. O último pobre que tentou gritar por socorro em frente ao Palácio do Planalto foi calado pela guarda real. Hoje vivemos uma censura diferente. É proibido dizer que é pobre, que passa fome, que o Brasil é um país do terceiro mundo. Hoje, somos um país em desenvolvimento em franca ascensão. O problema é que estamos entre os dez primeiros em matéria de economia e no final da fila no quesito desenvolvimento humano.

No discurso do presidente, os pobres estão melhorando de situação. Mas os ricos melhoram muito mais e num ritmo muito mais rápido. Entre a classe A e a classe E há uma diferença muito grande no ritmo de crescimento. E no meio desse abismo há uma classe média que vem sendo mais tributada a cada dia. Entre o clube dos milionários e o clube dos miseráveis, há uma multidão que sustenta o clube do governo. Um clube formado por uma justiça lenta, por parlamentares que não legislam em favor dos trabalhadores e por Executivo que tropeça de promessa em promessa. E pior, um clube que tem despesas altíssimas. Em resumo, custa muito caro a gente manter esse clube em vista dos benefícios que ele nos reserva.

Diante desse cenário, fala-se que o Brasil vai ser o país do futuro, do biodiesel, da água mineral, do petróleo, da biodiversidade, da Copa do Mundo de 2014. Um país com potencial para crescer. Diante desse futuro pouco cidadão, o discurso de país da igualdade, da solidariedade, da distribuição de renda equânime perde força. Bom para os Slim e os Gates brasileiros. O problema é que o bolo do crescimento, desde a época do regime militar, vem sendo batido, assado e repartido de forma errada. Segundo estudos, 80% do bolo vão para os 10% mais ricos. Terminando a minha média, à beira de uma indigestão, grito para quem quiser ouvir: Brasil de Todos, o sonho acabou.


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