Daniel Campos

Imprimir Enviar para amigo
20/01/2011 - Paixão despedaçada

Depois de muito tempo e de um tempo muito, sangro minha boca de uísque. Uísque caubói como um dia imaginamos ser. Aliás, como um dia fomos. Uísque para lhe chamar, para lhe invocar, para lhe encontrar... Mais do que nunca, é preciso lhe pedir perdão. Perdão por não ter honrado a promessa feita diante de seus olhos verdes de nunca deixar seu império se perder. Seu mundo particular, feito de terra vermelha e fantasia, depois de mais de setenta anos, passa para mãos que não tem seu sobrenome e que não conhecessem sua história.

Perdoe-me por não ter conseguido impedir esse malfeito assim como não consegui evitar sua morte numa cama de hospital. Perdoe-me, eu tentei, eu lidei, eu falei, mas, dessa vez, ao contrário de vidas passadas não nasci seu filho de sangue. Estou burocraticamente em um posto desfavorável, mais distante de sua linha sucessória. E sozinho, como o senhor sabe muito bem, fica difícil lutar e ainda mais difícil ganhar. Ainda mais quando de um lado dessa luta está um pássaro coração e de outro, carcarás vintém.

Perdoe-me por não ter conseguido levar seu sonho adiante. Perdoe-me por não ter conseguido amparar toda sua terra nessas minhas mãos de menino que ainda guardam calos do tempo em que juntos semeamos dias mais poéticos. Hoje colho a ilusão de quem sonhou demais. Ainda não faz um ano em que seu corpo foi entregue a terra e sua roça já se despedaça. Ah! Se soubessem que aquele sítio é como uma espécie de santo sudário. Ali, no solo, nas plantas, nas ferramentas, nas paredes, ficaram registrados seus traços, seus gestos, suas expressões...

De onde está, o senhor é testemunha do quanto eu rezei, do quanto eu relutei, do quanto eu apostei tentando evitar o pior. Não pude cuidar do senhor depois da morte da vó. Não pude impedir que o câncer o abatesse de forma tão prematura. Não pude levar a alça de seu caixão e beber sua morte e não chorá-lo conforme sempre me pediu. Não pude impedir que continuasse vendo e ouvindo as coisas da Terra depois de morto. Não pude impedir sua aflição, seu sofrimento, seu pranto corrente.

Perdoe-me. Perdoe-me desta vez por não ter conseguido impedir que sua terra, palco de tantas lendas, sangrasse dividida, invadida, doida como o uísque que sangra agora em minha boca. Seu sítio, inteiro, como sempre gostou de vivê-lo, só será conjugado no passado. Mas seu esforço não foi em vão. Se ainda me permitir, continuarei tocando seu sítio para além do concreto, com palavras e sentimentos em textos que servirão de pretexto para manter vivo esse mundo mágico. E memórias não me faltam.

Sua presença continua forte. Seu perfume segue o mesmo. Pena que está tão difícil se desvencilhar de tanta tristeza e seguir seu caminho. Ainda sente as dores terrenas. Eu não queria isso, sofro com o senhor, mas lhe entendo. Ninguém se desliga de uma vida tão intensa com tanta facilidade. Fico agradecido de depois de tudo tentar me acalantar como das vezes que me colocou em seus braços e cantou para eu dormir. Dos nossos olhos verdes as lágrimas rolam no mesmo silêncio que a essa altura deve pesar sobre aquele lugar que um dia foi o Sítio Boa Vista.

Uma boa vista que depois de sua morte só faz turvar rumo à cegueira.



Comentários

Nenhum comentário.


Escreva um comentário

Participe de um diálogo comigo e com outros leitores. Não faça comentários que não tenham relação com este texto ou que contenha conteúdo calunioso, difamatório, injurioso, racista, de incitação à violência ou a qualquer ilegalidade. Eu me resguardo no direito de remover comentários que não respeitem isto.
Agradeço sua participação e colaboração.

voltar