Daniel Campos

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Pela frente ou pelas costas?

A campainha se oferecia, se esticava, tentava ser uma perna cravada na parede... Mas suas mãos de esmalte corroído por dentes nervosos temiam-na. Ou melhor, temiam o que existia por detrás da campainha. O portão, feito com um jogo de barras de ferro, impediam seus olhos de avistar o que existia lá dentro. Ela rabiscava os ouvidos naquele concreto grosseiro do muro só para ver se escutava algo. Ela só ouvia os tijolos conversando. Ela ficava sem graça quando algum vizinho começava a olhá-la com um pouco mais de atenção. Logo disfarçava, fingia estar esperando ônibus, depositando cartas (levava sempre envelopes na bolsa) e até ser uma moradora daquelas calçadas.

Noite alta. Mas ainda mais baixa do que o muro. Não era de estranhar se duas luzes (uma vermelha e outra azul) rodassem na escuridão. Polícia. Certa vez, trouxe o violão nas costas. Quem sabe uma serenata. Mas nunca fez tanto silêncio como naquela noite. Algumas flores escapavam da jardineira. Folhas de coqueiro. Um vento mais forte derrubava umas flores rosadas em forma de balão. Flores que grudavam no chão feito chiclete. Chiclete de beija-flor. Mesmo amassadas, guardava uma daquelas flores no bolso.

Lá dentro, uma cachorra latia. Um bem-te-vi cantava. Parecia haver uma vida normal lá dentro. De gente que dorme, escova os dentes, assiste televisão. Escutei muitos corações vagabundos naquela calçada. Queria entrar naquela casa como o jornal entra todo dia. Mas ela não tinha catapulta nem as mãos de um jornaleiro. Mas tinha a impressão de estar sendo vigiada a cada movimento. Quem sabe alguém a observava pelo jogo de barras do portão e não tinha coragem de encontrá-la. Talvez ficassem preocupados ou rissem da impossibilidade dela. Se ela fumasse, podia tentar escrever algumas palavras de fumaça e soltar no ar. O que importava é que ela estava ali, perto. Separados por um muro. Se sentia em berlim. Como se aquele muro fosse construído do dia para noite dos restos daquele mundo que separou o ocidente do oriente.

Um muro cheio de curvas, armadilhas e esconderijos. Quantas voltas ao redor daquele muro, daquele quarteirão, daquela cidade. Tinha impressão de que a qualquer momento ela poderia ser sugada por aquele muro e ficasse presa naquele concreto como um fóssil. Já imaginava o seu esqueleto naquele muro. Chegava a ser reconfortante. Afinal, estaria ali, eternizada, a poucos metros de seu bem amado. O muro era alto, não podia se arriscar. E ainda tinha aqueles cacos de garrafa cortantes por todo seu cume.

Tentou muitas vezes iniciar um diálogo com o cachorro que latia compassadamente. Mas foi em vão. Um bem-te-vi que nasceu com sina de pombo correio contava àquela mulher que havia visto quem ela tanto queria. Aquele pássaro contava. Ele não mentiria. Ao menos, ela acreditava que não. Num toque de bruxaria, ela conseguiu ver além do que queria lhe mostrar o portão. E ela se viu deitada em uma cadeira branca, ao redor de uma mesa branca, às voltas com uma piscina branca, esperando por si mesma.


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