Daniel Campos

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Perturbadora

Cumprindo uma espécie maldição, ela estava lá. No mais improvável do improvável, lá estava ela. E pior, ele nem sabia quem ela era. Mas sabia que ela o seguia, mesmo sendo a primeira vez que a via. Talvez ela já aparecesse de outras formas, de outros jeitos, mas com o mesmo frio na sétima vértebra. E ele era supersticioso por demais. Aliás, tudo dele era por demais. O nervosismo levava as unhas, como cordeirinhas, a sua boca. Mas dali a pouco ela iria embora. Afinal, eram tantos ônibus, tantos trens, tantos aviões, tantos submarinos que poderiam levá-la para longe. Tudo acabaria em alguns poucos segundos. Não havia razão para tanto. Ou havia?

Para seu grande espanto, quando ele olhou para o lado esquerdo, aquele do coração, ela estava ali. Como uma imensa fotografia 3x4. E ainda dizendo um sonoro oi. Ela estava ali. Com um sorriso esvaecendo entalhado no rosto de grandes olhos e pequenos brincos iluminados. Tinha o cabelo esfarelado, como se acordasse há míseros segundos. Aliás, tinha uma sonolência nos gestos, nos passos e na língua. Pudera... Aquele "oi" foi a única palavra que conseguiu dizer. Queria dizer mais, mas não conseguia. Uma blusa detalhava, mesmo sem querer, seus grandes seios. E suas pernas pulavam de uma minissaia jeans. No final dos pelos ouriçados duas sandálias baixas traduziam aquela menina simplória, mas que causava um dos reboliços mais complexos já vividos por aquele homem de meia idade.

Para agravar o cenário, ela coloca sobre suas pernas um casaco negro e sobre o casaco uma cartola, daquelas de mágico. Mas o que queria uma menina tão real com aquele objeto de ficção. Seria ela uma circense dessas que rolam na serragem e gemem sob lonas coloridas? Seria ela uma estudante de teatro pronta a protagonizar o drama alheio? Seria ela uma dessas eróticas que para transar se iludem de um amor maior? Ah! Quantas perguntas passam pela cabeça daquele homem de nervos à flor da pele. Ele não estava mais agüentando se segurar. Perdia os sentidos, suava frio e era arremetido por calores vulcânicos. A lava do desejo infestava cada poro de seu corpo cansado de tamanha tortura.

Num súbito, ele apoiou sua mão esquerda sobre o tecido fino da perna esquerda de sua calça. E ela, como que respondendo de forma proposital ou ocasional, acredite no que quiser, roçou sua coxa sobre as costas daquela mão. E a mão esquerda daquele destro ficou comprimida ali entre dois corpos amantes e desconhecidos ao mesmo tempo. Aquela pele fria, como que morta, foi subvertendo ainda mais a ordem presente naquele homem de horas incertas. E ela não tinha qualquer reação que pudesse romper sua sonolência. E ele, como que se sentindo culpado pelas dores do mundo, foi sentindo cada vez mais aquela textura fria. Mas era um frio que excitava seu submundo. E ele era aquele submundo, aquele subhomem, aquela subcoisa.

Para ele, não importava o sorriso de bodas e bodas de sua esposa, o sorriso de ninar de seus três filhos, o sorriso sádico dele no espelho retrovisor, o que importava era a iminência do sorriso do ápice do sexo oposto que estava há poucos centímetros de sua mão. Ele queria apalpá-la e fincar seus dedos nela como diante de uma manga rosa - fria e suculenta e perfumada. E o gosto ainda era mais forte, posto que ele sentia-se como aqueles moleques que roubam manga do vizinho e a comem escondido. E ele roçava as costas de sua mão naquela perna e, sem perceber, roçava sua aliança. Tinha uma aliança espessa, que tomava dois ou três centímetros de seu dedo num ouro de tolo.

Quando um novo mundo estava prestes a sair daquela cartola, ela pediu para descer. Já havia feito o seu papel. O de perturbadora. Ela se angustia. Sabia que caminhava sob um arame. Qualquer deslize poderia estragar tudo. Ela se prepara para descer e ele, como uma correnteza, escorre sua mão por debaixo daquela saia como que querendo uma última mágica. A mão se enche daquela pele macia. Como que um daqueles estupradores baratos, ele a queria. Estava no cio. No cio de seus desejos mais pecaminosos. Nada mais importava senão aquela pele fria. Ela sorri de forma ingênua como que soubesse que nada iria além daquilo. Por ironia do destino, ele tem de descer do carro para dar passagem para aquele pássaro em fuga. Ela, num último ato, abre as pernas para descer num ângulo que lhe permite avistar coelhos e mais coelhos saindo daquela cartola. Ela agradece sussurrando em seus ouvidos enquanto se prepara para realizar o número do desaparecimento.

Ele, mesmo com toda provocação, não tem coragem de pular de uma vez por todas na lama, enlameando a moral e os bons costumes. Ele volta para o carro e deixa a menina sumir na paisagem. Enquanto ele se contorce de covardia, sua mão sente a falta daquela flor fria. Mas, por um instinto qualquer, sabia que se reencontraria com ela. Afinal, além de carnívora, a flor era quase um destino se não fosse um pecado. Aliás, aquela era a mágica plena. A mágica de tirar o destino dos trilhos e levá-lo para a boca do pecado.


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