Daniel Campos

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Sonhos de padaria

Ela sumia durante a noite. Ninguém a encontrava. Nem na casa de fundo onde morava, nem nos dois celulares que levava consigo, nem na padaria onde sempre passava e tomava um café e comia um sonho, como se essa fosse a sua maior travessura. Não era de aprontar, tampouco de quebrar sua rotina. Nunca roubou, nunca mentiu, nunca blasfemou, nunca matou, nunca desonrou,..., nunca quebrou os dez mandamentos. E também não se dava ao desfrute quando se tratava de pecados capitais. Ira, inveja, luxúria ficavam fora de seu cotidiano. E aquele café com sonho na padaria não poderia ser considerado desejo, tampouco gula. Era apenas cotidiano.

Trabalhava em um lugar público com uma gente pública num serviço público, mas se privava a ponto de ter pouquíssimos pensamentos públicos. Tirante o café com sonho, ninguém sabia mais nada dela. Era privada de si própria. Não lhe faltavam convites ou galanteios. Dos mais nobres aos de mais baixo calão. Embora ela se vestisse sem fendas ou decotes. Diante das provocações, ou melhor, das tentações... Ela passava incólume, fingindo que as palavras não falavam com ela.

Em mais de um ano de emprego, nunca a ouviram falando palavrão ou testemunharam qualquer outro abuso vindo dela. Trabalhava em um observatório procurando estrelas. Ninguém a via durante o dia. Não faltavam olhares em suas janelas de vidraças límpidas. Até que foi seguida e perseguida por um amor. Apaixonara-se logo pelo vendedor de sonhos da padaria. Ela que era assediada por cientistas, por astrônomos, por astrólogos,..., fora se apaixonar pelo vendedor de sonhos.

O amor, que era para ser só de sonhos e olhares de creme, tomou corpo. O desejo e a gula nunca estiveram tão próximos. Quando se deu conta, faltavam pouquíssimos minutos para anoitecer e o vendedor de sonhos estava deitado ao seu lado, com um hálito quente. Ela se levantou, sem saber o que fazer, abriu as gavetas, colocou um vestido branco que abafou o calor do último sonho. Sonho ou pecado? A resposta ficaria para depois.

Antes que o menino despertasse de seu sono, desdobrou duas asas de algodão, que estavam guardadas no fundo de uma gaveta e, com os pingos de uma vela que ficava sempre acesa, colou as asas em suas costas. Abriu um porta-jóias achatado, pegou uma auréola, que mais parece uma argola daquelas vendias em camelô, e a colocou sobre a cabeça. De uma só vez desafinou quatro ou cinco notas de uma harpa. Definitivamente, não era o seu melhor dia. Passou um pouco de pó de arroz em suas bochechas rosadas e lambuzou a boca no creme do último sonho, ou melhor, do primeiro de seus pesadelos. Afinal, aquele sonho de açúcar seria o responsável por deixá-la, de uma vez por todas, longe das estrelas.



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