Daniel Campos

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09/01/2010 - Suspiro de Neruda

Antes do último suspiro, fez o último dos últimos pedidos. Queria ouvir novamente um poema de Neruda. Ora, veja se isso é hora de se preocupar com um poeta chileno. Podia ter pedido um legítimo escocês 20 anos, um chocolate suíço, um charuto cubano... A enfermaria virou uma confusão. Nenhuma das enfermeiras saberia declamar o tal poema que falava de amor, de juventude, de liberdade... O anestesista não gostava de poesia, o cirurgião só lia literatura inglesa e a médica chefe não quis mais saber dessas manifestações artísticas românticas depois que teve seu noivado desfeito.

O paciente estava perdido. Tentaram ligar para os parentes, mas estes não deram bola à maluquice do velho que adorava havia reservado a principal prateleira da sala de estar para os livros de Neruda. Quem sabe se chamassem o diretor do hospital. Dizem os boatos que ele sabe falar espanhol fluentemente. Havia até passado férias em Buenos Aires com dinheiro desviado da entidade filantrópica. Diante das circunstancias, era melhor não aborrecer o patrão. Afinal, era só um moribundo.

E se trocassem o padre, que no máximo saberia algumas trovas italianas, por um especialista em Neruda. A extrema-unção poderia vir das mãos de um literato, ou melhor, de um poeta. Mas onde achar um poeta. Havia um que havia até mesmo lançado um livro, mas este estava internado há três dias na UTI. Tinha uma professora de jardim de infância, talvez conhecesse algo de poesia, mas ela não podia sair do balão de oxigênio. Também havia um estudante de vestibular por ali, mas estava sem poder falar por conta de um acidente.

Em meio à discussão, o acamado senhor pediu que andassem logo, pois queria declamar tal verso à vida, de modo a deixá-la apaixonada. Quem sabe, com a intensidade da poesia, conquistaria mais alguns dias...


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