Daniel Campos

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Um conto de ano-novo

O edifício se confundiria facilmente com a noite se não fossem as luzes da decoração de Natal esparramadas pela sacada. Fim de dezembro. Noite abafada. Janela aberta. O pouco de vento que navega pelos ares faz com que a cortina daquela sacada ganhe uma espécie de pulsação. Uma pulsação pausada como o sono daquela mulher.

Ela dormia como se dorme nos filmes. Além de o sono ser plástico, existia toda uma história que levava àquela cena.

Mal acabara de almoçar e foi arrumar o passado numa daquelas limpezas típicas de final de ano. Para evitar incômodos, trancou a porta do quarto. Queria reviver um ano que ganhava a sua última tarde. O silêncio era necessário. Era como se cada lembrança tivesse uma música, uma essência, uma personalidade própria... Embora tudo aquilo se confundisse com ela.

Cumprido todo o ritual, começou a remexer o calendário. Pastas, gavetas, armários, caixas, enfim, ela reviraria tudo o que ainda exalasse um perfume recente. Após jogar tudo sobre a cama, vasculhou pedaço por pedaço do quebra-cabeça que formou aquele ano.

Fotografias de vários temas; passagens de tantas viagens curtas; um ursinho de pelúcia; cópias dos currículos que enviou para as empresas mais diversas; algumas pétalas de orquídea desidratadas por entre as páginas de um romance que não terminou de ler; prestações daquela loja de sapatos; uma amostra de perfume que ganhou na calçada; extratos bancários; um pingente e uma infinidade de cartões. Cartões de natal, cartões de aniversário, cartões postais que chegaram de longe e até cartões que não faziam menção a nenhuma data específica.

Os olhos, que já haviam lido coisas desnecessárias e detalhes importantíssimos para o seu destino, ardiam. Os seus olhos, que já haviam chorado por tantos outros motivos naquela tarde, lacrimejavam de sono. Mas não poderia dormir. Não naquele momento. E ela sabia disso como ninguém ousou saber. Embora o calor se alastrasse sem cavalheirismos, colocou o chuveiro na potência máxima. Talvez, por alguma razão, pensou que era inverno. A água quente escorria como febre naquele corpo povoado de lembranças.

O corpo molhado não impediu a ânsia de reler o trecho de um cartão. Mais algumas leituras e o corpo cansado das emoções revistas permitia que o sono se tornasse cada vez mais forte. Minutos depois e o sono a toma por completo. Nua, desmaia sobre lembranças nuas. Seria seu último sono e seus últimos sonhos nos braços daquele ano.

Pausa. Silêncio. Sono. Sonhos.

Um estouro prematuro ganha os céus. Sem querer, ela desperta assustada. Resta menos de meia hora para o grand?finale. As lembranças haviam marcado suas costas. A pele rabiscada pelas anotações de um tempo que não freqüentou as aulas de caligrafia. Ainda zonza, mas com toda pressa possível para aquele instante, abre o guarda-roupa e pega um vestido de festa. Não daria tempo para escolher entre a superstição do branco, do vermelho, do azul... Então, ela fica logo com um vestido sem costas. Uma rápida parada em frente ao espelho. Faltava pouco, muito pouco. Talvez, do alto da sua sacada, já pudesse ver o comecinho do novo ano.

Sem tempo para vestir sandálias, ela segue descalça. Abre a porta do quarto e não há ninguém a esperá-la, ao menos, ali. Pega uma taça vazia e, do alto de sua elegância, corre. Prestes a sair, o telefone toca, mas... Os corredores do prédio parecem imensos. O elevador não chega. Desesperada, desce as escadas ao som dos fogos. Uma sensação de não conseguir. Sai do prédio e um mar de ondas pessoas promessas ganha seus pés.

Os últimos números de uma contagem regressiva. Ela respira fundo e mais fundo e mais que mais fundo e esboça um sorriso. Enquanto todos se cumprimentam, ela perde seus olhos naquela taça vazia. Era como se o mundo do seu quarto de minutos atrás e o mundo da praia não fossem o mesmo mundo. E as lembranças entrariam naquele ano expostas como nunca.

De repente, deixa a taça cair na areia e se oferece ao mar como mais uma rosa de Iemanjá.


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