Daniel Campos

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Vela em riste

Quando o fósforo acalorado por duas unhas tão esmaltadas quão longas esfrega-se nas laterais escuras de uma caixa sem samba, uma explosão em chama acende o pavio lânguido de uma vela. À luz dessa explosão, o mundo abre seus ouvidos. A vela é posta nas costas de um piano como um vaso solitário. Vaso de cera. Vaso em chamas. Vaso de cera. E os dedos das unhas daquela mulher, ainda com fragmentos de pólvora do fósforo, causavam inúmeras outras explosões. Algumas maiores, outras menores e outras ainda não diagnosticadas. Explosões vindas das teclas esmaltadas de um piano longo como um daqueles vestidos de baile.

O quarto escuro, o piano escuro e até as teclas brancas se confundindo no marfim das negras numa escuridão que só não era plena porque havia a chama daquela vela em riste. Vela que deixava à meia luz o corpo de uma mulher que, mesmo rodeada de uma escuridão espessa, fechava os olhos. Tocava como se possuída. Mas não possuída por espíritos, assombrações ou planetas de néon. Mas possuída por seus próprios desejos. E tocava como se estivesse nua. Ás vezes, tirava toda a roupa para tocar, mas a nudez que está em questão não é de pele, mas de alma. Ela conseguia deixar sua alma nua enquanto se entregava àquelas teclas.

Tocava o piano, mas o prazer era tanto que parecia que era o piano que a tocava. E a única testemunha de tudo isso era aquela vela. E a mulher tocava enquanto houvesse vela. A última nota correspondia exatamente ao último suspiro da vela. Era algo que nem ela sabia explicar, podia ser noite ou dia, ela só tocava com a vela acesa. Dia ou noite, fechava todas as cortinas, portas, janelas e outras frestas para não ser interrompida pela luz dos sóis, dos faróis, das estrelas ou de algum deus mais abusado. Apagavam as luzes dos lustres, o pavio das lamparinas, os visores dos celulares, as abadas dos abajures e os ponteiros dos relógios só para que a única luz existente pertencesse à vela. E ela não sabia explicar. Mas era rodeada de talvez.

Talvez porque ela quisesse evocar os mortos. E tocando daquela forma ninguém duvidava que ali, ao seu lado, estavam tchaikovski, mozart, jobim, vivaldi, radamés, puccini, schubert, pixinguinha, beethoven, villa lobos, ravel... Era como se a cada música, um desses mestres invadisse seu corpo e abusasse das teclas do piano. Mas havia ainda muitas outras hipóteses, mais ou menos plausíveis, mas todas possíveis de explicar aquela cena.

Talvez porque tinha vergonha e tocava escondida. Talvez porque no escuro se concentrasse mais e até demais. Talvez porque o beijo mais quente lhe fora roubado no escuro, assim como fora no escuro a mais horrível de suas surras. Surra que levou à luz de seu divórcio. Talvez porque foi a luz de uma vela que ela, pela primeira vez, soube o que era sexo ao ver seus pais pela fresta da porta do quarto. Talvez porque ela fez amor, pela primeira vez, circundada de velas como num ritual de magia negra. Embora a magia daquele dia fosse branca, azul, violeta... Talvez porque foi à luz de velas que ela viu sua filha fazendo amor pela primeira vez. Talvez porque o amor lhe aparecera da última vez com o rosto encoberto, como se na penumbra de uma luz de vela. Talvez porque o jantar que sempre sonhou e nunca teve fosse à luz de velas. Talvez porque o primeiro diário que escreveu fosse à luz de velas. Talvez porque a primeira vez que conheceu a morte foi na vela pouca de um velório. Talvez porque deu à luz sob a luz de velas. Talvez porque todas as novenas que fizera foram feitas à luz de velas.

Não importava o talvez, o fato é que aquela vela de chama trêmula derretia sua parafina no ardor de uma música que se misturava entre o erudito e o popular. O clássico se casando com o moderno e dando à luz ao pós-moderno. Diante daquela vela em riste, uma entrega total. A mulher sem nome queimava todos os seus medos e seus sonhos em uma mesma chama. Uma chama quem muitas vezes tinha um perfume, uma textura, um rosto que se confundiam com aquela dama em chama que fazia do piano a sua própria cama.


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