Daniel Campos

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01/12/2013 - Encontro em três atos (3)

As cortinas se abrem. Música de funeral. A luz foca no Sentimenteiro, que está deitado. A fala da Estrela foi tão doída que o matou. Morreu de amor não correspondido. De tristeza, as estrelas que estavam penduradas, caem todas, como se o céu perdesse o brilho.Então, a Estrela, iluminada por um naco de luz, dá um grito não entendível aos ouvidos humanos. Então, ela se ilumina por completo e se joga da janela, e fica pendurada por um cabo. Dali, ela joga brilho sobre o Sentimenteiro, como dando sua vida para ele. Uma luz brilha dela para ele. E ele desperta. A música muda, ganhando um ritmo delicado. Começa então, um dueto poético marcado por certezas incertas e pela continuidade da espera, enquanto a Estrela desce até ele num ritmo bastante lento:

Estrela:
Se você não quiser, não precisa me segurar
Eu me lancei porque quis, não, não se culpe
E me desculpe se eu vier a te machucar
Pois sou intensa e propensa a querer mais
E mais o que vier a me oferecer, do prazer
Ao sofrer, quero tudo que por amor é capaz

Sentimenteiro:
Jamais te deixaria cair, meus braços são seus
Sua falta me deu forças para suportar a pior dor
Pode vir sem medo, com sonhos e de olhos fechados
De agora em diante, deixemos de lado os passados
Estes braços são anzóis de pescador e asas de condor
São braços do seu homem, do seu tempo, do seu deus

Estrela:
Não tenho medo de você, mas medo do que eu possa
Vir a causar em seu mundo. Somos tão diferentes
Podemos ser sementes do mesmo sentimento
Mas nos distinguimos por inteiro, veja nas poças
Nossos reflexos nos distanciando a cada momento
Essas diferenças vão nos trair e atrair a solidão

Sentimenteiro:
Amanhãs, hipóteses, achismos, suposições, teorias
Esqueça-os! Dedique-se apenas ao que temos agora
E nesta hora, que é regida pelas euforias da fantasia
Somos só eu e você, independentemente dos corpos,
Das formas, dos reflexos, se existe ou não nexo
Que importa se alguém ficará perplexo. Somos sopros...

Estrela:
Eu já me apaixonei perdidamente por outros astros,
Estrelas assim como eu, e me decepcionei, e até chorei
E até mesmo me apaguei por alguns anos. Sei dos fatos
Não há como durar algo que já nasceu fadado a acabar
Começamos errados porque somos sim compromissados
Mais do que com qualquer passado, com o presente retrato

Sentimenteiro:
Não há um só amor que se forje longe do fogo do mistério
Querer-mo-nos, mas não sabemos o que nos espera logo ali
Há sempre uma dose de desconhecido a ser bebida por nós
Não posso lhe garantir que seremos felizes para além daqui
O bem-te-vi procura bem-ti-ver e bem-si-ver mesmo a sós
Porque sabe que a capacidade de amar é o que o faz aéreo

Estrela:
Por que insiste em tentar adivinhar o que penso e o que sinto?
Eu não sou feita de açúcar, eu não desmancho, sei o que quero
Não sou de desistir de um amor mesmo que ele seja só ilusão
Eu sussurro, eu murmuro, eu suspiro, mas eu também berro
Não sou tão frágil como pensa, portanto, pare de me proteger
Deixa-me viver ao meu modo antes de tudo isso ser extinto.

Sentimenteiro:
Não pense mal de mim, mas é que te vejo como menininha
Uma estrela de ninar, dos contos de fada, indefesa e pura
Não está acostumada com impropérios terrenos, nossos venenos
Quero apenas te poupar de sofrimento, sei que aguento
Em minha carne toda e qualquer investida, por mais dura
Que seja a sentença dos céus ou dos infernos: será minha

Estrela:
Você não consegue enxergar que eu te quero, mas não posso
Aliás, não podemos, nosso amor é grande mas somos pequenos
Para suportar os efeitos que este encontro parirá em breve
Como se atreve a pensar que eu não me satisfaria em ter você?
Somos aqueles que sempre se procuraram, até me coço
E tenho tonturas e derretimentos... Veja meus olhos de fricassê

Sentimenteiro:
Eu também tenho medo de não estar a sua altura, mas desafio
Qualquer um desta terra a te amar mais e com mais urgência
Sendo assim, enfrento tudo e todos para poder ter suas pontas
Cravadas em minha pele. Quero ser mais você um só fio
De destino. Hei de caminhar no sentido que o querer nos aponta
Sem se preocupar se este encontro me trará ou não penitência

Estrela:
Então me prometa que vai confessar sempre o que sente
O que pensa, o que quer... Havemos de ser sinceros e honestos,
Sobretudo, um com o outro, e com nós mesmos. É latente
Que já passamos dos limites espaciais, sentimentais, ancestrais
Para que sejamos capaz de trair o que sentimos. Nada de restos,
Nada de sobras, nada de migalhas. Quero tudo ou fique mudo.

Sentimenteiro:
Eu mato e morro se preciso for para manter vivo e íntegro esse amor
Vou defender este casamento com unhas, dentes e todas as armas
Nada ou ninguém será capaz de me fazer negar ou maltratar esta entrega
Se algo estiver um milímetro fora do perfeito, hei de ser o teu leito
Deixa-me te libertar de todos os medos, de todos os segredos e carmas
Por você, por mim, por nós, vamos até o fim... Choro... E te imploro

Estrela:
Então, sou sua. Minhas pontas, minha luminosidade e minha claridade
São suas. Minhas brincadeiras, minhas fogueiras, minhas noites inteiras
São suas. Meus brilhos, meus estribilhos, meus quereres, meus poderes
São seus. Minha mitologia, minha teoria sobre o encontro, meu ponto
E meu conto de fantasia são seus. Sinta em seus braços o meu mundinho,
Deite-se no meu linho, sinta o meu carinho e a certeza de não ser mais sozinho.

Neste último verso, a estrela finalmente chega aos braços do sentimenteiro. A chuva de papel picados volta, o seu troveja, o vento ruge. O céu relampeja e as nuvens são, na verdade, barcas do fim dos tempos. Das janelas, homens e mulheres, de várias idades, aparecem e dão as mãos, as bocas, os corpos mexidos por aquele jogo de luzes. É como se todo e qualquer impossível fosse possível. E todos se aventuram, e todos se arriscam, e todos confessam e se jogam nos braços do sentimento. O tempo não mais governa o mundo, e minutos duram eternidades. E, num de repente, todas as luzes do céu se apagam e o mundo mergulha na solidão. São gritos, são mortes, são desilusões. Um desespero generalizado, com as constelações desalinhadas e as linhas dos destinos completamente desencaixadas.

Sentimenteiro:
Perdão, se é que pode haver perdão para tanto egoísmo
Ah se eu pudesse, mas não posso. Agora eu compreendo
Não, não posso querer que brilhe só para mim. Não prendo
Nem posso prender uma estrela. Há um verdadeiro abismo
Entre nós. Como eu pude ser tão egoísta e imprudente
Eu quero você, mas não posso tê-la para mim somente

Estrela:
Eu te avisei que era impossível nos ter por muito tempo
Da forma como previa. Há uma força maior que nos separa
Mas sentir toda a intensidade e a verdade deste encontro
Seu calor, sua doação, seu brilho, sua poesia, sua tara
Tudo isso me fez maior e melhor, me dando a certeza
De que a beleza de amar estará viva na espera do reencontro

Sentimenteiro:
Pelo infinito dos meus dias hei de te amar mais e mais, toda noite
Estarei a sua espera, num novo reencontro, com tudo o que sou
E tenho e sinto, não minto, voltados ao céu independente do açoite
Da saudade ou da solidão. É na sua luz, estrela-mulher, que voo
E me doo a você por completo. Abrir mão agora é ter para sempre
Este encontro. Estarei sempre aqui, apaixonado, seu e presente.

Em respeito, a chuva passa e os trovões se calam. Sem choros ou arrependimentos, o Sentimenteiro ergue os braços e liberta a estrela, que volta ao mais alto dos céus, brilhando um amor capaz de reacender Vênus e todas as outras estrelas. O céu volta a se iluminar e os apaixonados voltam a acreditar em seus sentimentos, sonhando com encontros e reencontros. Casais entram no palco de mãos dadas, a música sobe feliz e o vento traz pétalas de rosa. O Sentimenteiro sorri, feliz e consciente, de que para amar não é necessário estar perto de quem se ama fisicamente, mas perto emocionalmente, num amor que desconhece tempo e espaço.

As cortinas se fecham. E por trás das cortinas, num jogo de luzes e sombras, o Sentimenteiro dança com a Estrela no chão e depois bailam no ar. Ficam uma música toda assim, até a música acabar e as luzes todas se apagarem. No silêncio, no escuro, ninguém mais sabe onde estão, se na terra, se no céu, se juntos, se separados. Assim é a vida dos que amam demais: incerta, mas com a certeza de que não há amor impossível.

Observação do autor: Chegamos ao fim ou ao (re)começo, como preferir. Muito obrigado por acompanhar esta pequena saga. Tenha um domingo estrelado!


Comentários

03/12/2013, por Danielle Almeida:

Sequência emocionante. Adorei!!!


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