Daniel Campos

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Não batizado

Os ponteiros dos relógios rondavam o epicentro
De um dia que tinha tudo para ser qualquer
Em algum lugar, alguém gritava, alguém gargalhava
Alguém se separava de outro alguém
Alguém cometia um assassinato
Alguém rezava a algum santo
Alguém adormecia
Alguém corria a página de um livro
Alguém saboreava um bom vinho
Alguém acompanhava a última parte da novela
Alguém ouvia música
Alguém se deixava, alguém se achava e se perdia nas mesas do jogo da vida
Mas isso tudo acontecia lá fora seguindo a rotina de um dia qualquer,
Mas lá fora era um outro mundo
Um mundo que não importava,
Na verdade, o lá fora deixava de existir.
Era como se o mundo parasse de girar, de rodar, de virar, de dançar... e esperasse
Nem lua nem estrelas ultrapassavam as cortinas
A única visita permitida era a da solidão, que já se preparava para se despedir
A cama e dois corpos
A chama e dois sopros
À primeira vista, uma cena comum
Só à primeira vista
E em outras vistas, duas criaturas se olhavam, se namoravam, se entrelaçavam
Olhos ungidos pelos óleos da noite
À meia luz, pedidos de perdão se davam naquela falta de ar
Respirar não era mais preciso
Aliás, essa vida mecânica não era mais precisa
Os pedidos de perdão surgiam e ninguém encontrava motivo algum para perdoar
Nenhuma culpa, nenhum pecado, nenhum arrependimento
O sentimento vertia à pele
Tudo era demais
Aliás, já não existia mais carne
Existia sentimento
E lentamente esse sentimento ficava nu
Duas criaturas entregues à nudez de sentimentos
Olhos cerrados como aquelas cortinas que escondiam a lua e as estrelas
Cortinas de vento
Cortinas de fumaça
Cortinas minguantes
A realidade se esvaia
Tudo se atraia e a distância traia seus princípios
O perto era realmente perto
E naquele encontro cego as expressões eram lidas em braile
Assim, não havia como entender nada errado
Era uma leitura concreta
As palavras se aventuravam naquele cenário
E tão logo eram rapidamente confundidas com o silêncio
Na verdade, o silêncio precisava ser dito
O medo e o desejo
O desejo e o medo
Fragrâncias tão distintas e tão próximas
De repente, tantas despedidas fizeram-se encontro
A solidão se desvencilhava das bocas
O tempo se desvencilhava das bocas
O medo era a única amarra que não permitia que as duas criaturas,
Formadas por sentimento,
Desvencilhassem-se de si próprias por todo o sempre
Medo do amanhã
E o amanhã não era nem nascido
Mas o medo não se chamava medo
O medo se chamava saudade
E ninguém se atreveu a pronunciar, naquela noite fria e quente, a palavra saudade
Maldita saudade bendita que infestava aquelas criaturas
Criaturas tão presentes e tão ausentes de si mesmas
E o desespero de se cair nas mãos da saudade fez surgir beijos desesperados
Beijos desgarrados
Beijos desenfreados
Beijos descompassados
Beijos desorientados
Beijos desarmados
Beijos desabrigados
Beijos desfeitos em outros beijos que já nasciam feitos e sob efeito do desespero
O desespero do tempo
O tempo do desespero
Ah! Mais uma vez o tempo
O tempo rasgado pelos beijos
E foi tanta luz que a lua sentiu ciúme
E foi tanta energia que as leis da física se desentenderam
Afinal dois sonhadores ocuparam, por alguns instantes, o mesmo sonho.
E foi tanto, mas tanto, que tudo parecia pouco
Ah! Naquele primeiro beijo, o lá fora foi expulso de todos os contextos e pretextos
Naquele beijo, o gênesis
Naquele beijo, tantos sorrisos se encontraram
Naquele beijo, tantas histórias se completaram
Naquele beijo, tantos sentidos fizeram sentido
Naquele beijo, tantas perguntas tiveram respostas
Naquele beijo, tantas doações foram retribuídas
Naquele beijo, a inspiração se materializou e infestou cada entranha daquelas criaturas
Naquele beijo, nenhuma fronteira, nenhuma porta, nenhuma muralha, nenhum cadeado
Naquele beijo, a matemática se resumiu à multiplicação e o português,
Mais do que nunca,
Fez-se língua
Naquele beijo, o imaginário, o inconsciente, o inesperado esperado há tanto tempo
Naquele beijo, os vestígios de uma civilização
A civilização dos que voaram em direção ao nascer e ao pôr do sol.
Naquele beijo, a intensidade
A intensidade de um sentimento bruto, ainda não batizado.


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