Daniel Campos

O Castigador


2010 - Romance

Editora Auxiliadora

Resumo

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25/05/2010 - Capítulo 23

Reencontro com sabor de croissant

Levado pelo braço, Sebastian atravessa um espécie de portal e chega a um vale composto por pedras afiadas e árvores secas. O local é horrível, escuro, com gritos vindos de todos os lados. Há espíritos jogados para todo lado. Alguns, sugados até a última gota das suas energias. Outros, completamente desfigurados.

Incrustado neste lugar horripilante, um casarão descolorido, coberto de mofo e trincas. Parece que vai cair a qualquer momento. Ele sente uma coisa ruim ao reconhecer aquela casa. De fato, a paisagem não é nada convidativa a um reencontro. Mas é ali mesmo que ele terá de conversar com sua avó.

Assustado com tudo aquilo, segue amparado por Valentina e por outros espíritos iluminados. É preciso muita luz para evitar que os umbralinos - fortalecidos por estarem em seu território - não aprontem nada. Ali, as energias positivas funcionam como uma espécie de alarme, transformando aquele grupo em uma espécie de alvo a ser exterminado.

Por isso, os socorristas, muitas vezes, entram disfarçados no umbral. Nem mesmo volitam para evitar alardes. Contudo, como a equipe de amparadores desta vez é bastante numerosa e preparada, dá para exteriorizar energia o suficiente na direção dos agressores extrafísicos criando um campo de força.

Além dos espíritos iluminados, Sebastian está no centro deste campo energético. É preciso se precaver contra as ciladas do maligno. Se os espíritos ruins o pegarem, torturá-lo-iam de um jeito que até mesmo sua volta ao corpo ficaria comprometida.

Uma espécie de fio espiritual chamado “cordão de prata” liga o perispírito de Sebastian, que viaja agora no umbral, ao seu corpo físico, deitado ao lado de Malena na cama. Esse cordão só é rompido no momento da morte biológica. Mas há quem defenda o perigo do rompimento inesperado desse cordão, ou seja, sem o consentimento de Deus.

Esse cordão de fluidos é feito de material imune a atritos ou a acontecimentos que possam vir a rompê-lo. No entanto, os espíritos das trevas tentam atrapalhar de todo modo a volta do perispírito ao corpo do qual foi projetado para fora.

Falando em maldades, outra frente de espíritos de luz, comandada por Klaus, um socorrista bastante evoluído, foi salvar o avô de Sebastian capturado pelas criaturas baixas. Esteban desobedeceu a seus superiores na tentativa desesperada de ajudar o neto. Queria conversar ele próprio com aquela que foi sua mulher na vida passada, dona Soledad.

No entanto, como ainda não tem evolução e aprendizado suficientes, tornou-se presa fácil. Depois de cair em uma zona de energias negativas, foi amarrado em um tronco com cordas feitas de material de baixíssima. Ali fizeram misérias com ele no intuito de enfraquecê-lo e aprisioná-lo de vez naquele lugar fedorento e sombrio.

Embora o grupo de Valentina tivesse uma baixa importante, Klaus, os umbralinos não conseguiram impedir ao encontro entre Sebastian e sua avó, Soledad, que foi surpreendida com aquele clarão.

Além da luz, que é um convite à redenção, a conversa teria o propósito de amolecer o coração daquela senhora de cabelo grisalho, anel de rubi e brincos de pérola negra.

- Vó Soledad, exclama o promotor abrindo os braços.

Ela tem um choque ao vê-lo, mas não vai ao seu encontro, tampouco responde seu cumprimento.

- A senhora não me conhece mais?

- Eu não abraço assassinos. Ou você esqueceu que me matou?

- Eu não matei a senhora.

- Matou sim. Deu-me veneno de rato por muitas noites.

- Não! Por muitas noites eu lhe dei sopa. Aquela sopa de fubá que a senhora tanto gostava. Tive o cuidado de comprá-lo diretamente das mãos de seu Ernesto, aquele senhor do sítio das Tulipas. Ele moía o milho no antigo moinho do riozinho que cortava suas terras. A senhora sempre disse que o fubá dali tinha um gosto especial.

- Mentiroso. Eu não conheço Ernesto algum. Você me envenenou aos poucos.

- A senhora acha que se eu a tivesse matado teria o trabalho de ter ficado semanas inteiras ao seu lado, ajudando em seus cuidados. Se quisesse me livrar da senhora já a teria matado no primeiro dia?

A velha emudece.

- Acha que se eu quisesse mal à senhora tinha chorado tanto, rezado com fervor pela sua alma, encomendado inúmeras missas?

- Pode ser consciência pesada.

- Como pode pensar tão mal de mim?

- Nem foi ao meu velório, seu ingrato. Não teve a menor consideração comigo. Eu vi tudo depois que morri. Não adianta tentar me enganar com essa conversa mole.

- Não fui ao seu velório porque minha mãe me escondeu a sua morte. Pediu para que eu fosse à casa de tia Emília, em Córdoba, buscar algumas fotos antigas para agradar a senhora e lá acabaram enrolando a minha volta por muitos dias. Quando cheguei, seu corpo já havia sido sepultado.

- Mentira. Você me deu veneno e fugiu como fogem os assassinos: sorrateiramente.

- Eu ainda levei as rosas amarelas que a senhora tanto gostava ao seu túmulo por semanas a fio. Briguei com minha mãe por ter me escondido sua morte. Ficamos meses sem se falar.

- E por que não me disse que iria buscar tais fotos? Sequer se despediu de mim.

- Minha mãe não me deixou contar. Disse que seria uma surpresa. E que a senhora já andava desmemoriada. De fato, não se lembrava de muitas coisas.

- Como pode falar assim de sua mãe, uma pessoa tão boa, que me amou tanto. Ela chorou muito no dia do meu funeral. Até desmaiar, a pobre desmaiou. Isso sim é amor.

- Se alguém matou a senhora, não fui eu. Além do mais, a senhora não foi executada, morreu porque seus rins pararam de funcionar. Está lá na sua causa mortis: falência múltipla dos órgãos.

- Mentira.

Um dos espíritos de luz informa telepaticamente a Sebastian que ela tem razão. Morreu porque foi envenenada. Os rins apenas levaram a culpa para evitar prisões e escândalos. Médicos foram muito bem pagos para não diagnosticarem envenenamento algum. Sem escutar aquela conversa paralela, dona Soledad continua:

- Você me matou porque queria ficar com minha casa, com meu dinheiro, com minhas jóias.

O promotor estremece com tal afirmação. Começa a pensar em um monte de coisas e a se revoltar. Sua vibração muda, o que é preocupante. Para ser bem sucedido na passagem pelo umbral é necessário ter uma mente sadia. Sebastian já havia adormecido nervoso por ter brigado com Malena. Por mais que tenha rezado, estava longe das condições ideais para vencer aquela batalha onde energia conta muito mais do que força física. Só que não dava mais para esperar. Dona Valentina quis correr o risco. E está prestes a acontecer o que todos temiam: aos poucos, a raiva o desequilibra:

- Malditos... Como puderam fazer isso...

Os espíritos das trevas se aproximam dele. Se continuar com essa oscilação vibratória colocará o plano a perder. A raiva é um dos principais alimentos dos umbralinos. Sua avó sabe disso e insiste:

- Você sempre gostou mais de seu avô do que de mim. Depois que ele morreu, quis me matar para ficar com tudo o que era dele para você.

Valentina adverte, tenta ajudar seu genro dizendo que ele precisa ser forte, que não deve se abalar com o fato de saber que sua avó havia sido morta. Suas fraquezas além de não resgatarem dona Soledad vão atrair uma leva de espíritos indesejados. Um dos espíritos de luz coloca a mão, da qual irá aflorar fluidos energéticos positivos, sobre o peito de Sebastian, que se concentra e frisa:

- Como eu poderia matar a pessoa que me levava ao campo, que me contava histórias de conquistadores espanhóis, que lanchava comigo nas casas mais tradicionais da cidade e que depois ria daquela gente que se embonecava toda para tomar chá? Como poderia matar a mulher que me defendeu dos bofetões de meu pai. Tinha orgulho de andar pelo centro de Buenos Aires de braço dado com uma mulher tão elegante quão a senhora. Não sabe o quanto me revoltou ver minha mãe e minhas tias disputando sua coleção de chapéus...

Ela se cala.

- Como poderia eu matar quem por várias vezes me buscou na escola, quem me dava gulouseimas longe dos olhos de minha mãe, quem me presenteou com meu primeiro cachorro. Eu prontamente o batizei de Gardel, em homenagem ao cantor que a senhora tanto admirava! O mordomo colocava os discos para girar na vitrola e nós girávamos no meio da sala de estar. Foi naquele piso amadeirado que a senhora me ensinou a dançar o tango.

Ela continua calada e começa a viajar por memórias boas e esquecidas dentro dela.

- Eu sei que falhei com a senhora, que não cumpri aquela promessa que me fez fazer de jamais vender a sua casa, tampouco destruir seu jardim de rosas. Porém, a ganância de seus filhos teve mais força do que eu, um simples menino. Eu lembro perfeitamente das cores e dos perfumes de seu roseiral, do trabalho que tinha com ele, da vez que me disse que gostava das rosas porque elas eram como o mundo: belo e coberto de espinhos.

- Mentiroso. Minha casa está aqui. Você me abandonou. Deixou que eu morasse sozinha nesse casarão. E tem mais: matou as rosas do meu jardim.

- Essa casa não existe. A senhora morreu. Diz que eu não fui ao seu velório mas não admite a própria morte. Isso tudo é fruto de pensamentos doentios. É preciso se libertar dessas ilusões.

Ela começa a chorar. Os umbralinos sentindo que estão perdendo aquele espírito gritam malfeitos. Berram coisas desagradáveis na tentativa de atiçar nela mágoas, rancores, ódio. É assim que prendem as pessoas ali, provocando desequilíbrios e um clima incapaz de aceitar o perdão. As criaturas das trevas fazem, a partir de energia densa, uma verdadeira barreira atrás dela.

Contra essa investida, o grupo de Valentina aumenta a intensidade de luz. Um dos amparadores projeta ao alto uma tela com imagens de momentos felizes vividos por Sebastian ao lado de dona Soledad. O promotor continua:

- Se eu pudesse, vó, teria impedido várias coisas. A destruição do jardim, a venda da casa, a sua morte. Se eu pudesse, como um último gesto de carinho, teria pedido que a enterrassem com aquele vestido de cambraia de linho que a senhora me levou pela primeira vez para comer croissants à beira do rio Tigre. Depois que a senhora morreu, eles perderam completamente o gosto.

Ela cambaleia e ele a abraça. Finalmente, o choro explode o perdão. A avó diz ao neto que não quer fazê-lo mal, que está se sentindo pesada com todo aquele ódio, que não aceita a morte...

Nesse instante, ele acorda banhado de suor e com a sensação de frio. É madrugada e a janela havia pousado entreaberta.

Malena, com insônia por conta da gravidez, pergunta se ele teve um pesadelo.

Ele diz que havia sonhado com sua avó.

A filha de Valentina pergunta o que aconteceu nesse sonho porque a cara dele é de quem acabou de sair de um pesadelo.

Sebastian diz que não se lembra de muita coisa, mas que o sonho despertou nele um enorme desejo de comer croissant.

Observação do autor: Próximo capítulo: dia 27/5 - não perca! Espero você.


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