Daniel Campos

O Castigador


2010 - Romance

Editora Auxiliadora

Resumo

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29/06/2010 - Capítulo 33

Acorde-me, por favor!

Ao descer ao túmulo, o caixão contendo o corpo de Gastón é envolto pela ternura de Celeste, que quebra o silêncio de lágrimas e cabeças baixas:

- Meu pai, eu sei que por causa de seu grau evolutivo e do seu merecimento, foi socorrido de imediato por nossos irmãos, no momento da passagem, sendo levado ao plano espiritual adequado ao trabalho que desenvolveu aqui entre nós. Eu tenho certeza de que o senhor, agora, está sob os cuidados de espíritos de luz que lhe receberam em sua viagem de volta. Mesmo sabendo que o que enterramos agora é só o seu corpo, carne e matéria, e que seu espírito retornou a nossa casa, que a nossa oração e o nosso sentimento sincero possam lhe auxiliar em sua readaptação.

- Não é fácil para uma filha enterrar um pai. Ainda mais um pai que foi exemplo de amor e família. Mas o senhor me ensinou muito. Ensinou-me a andar de bicicleta, a tirar boas notas na escola, a viver intensamente, a cuidar de quem eu amo. Ensinou-me, inclusive, que a morte é só uma passagem e de que, na verdade, ninguém morre. Então, por que não acreditar no que me disse e me sentir forte?

- Seja como médico, como professor, como médium quantas pessoas ajudou durante a vida? Quantos corpos e almas salvou? Impossível calcular. E essa vocação para o socorro, para o amor, para o bem é a lição que fica para todos nós que nos despedimos daquele que viveu para ajudar o próximo. Muitos podem estranhar esse enterro simples, numa cova singela e sem nenhum tipo de honraria.

- Mas o senhor nos ensinou que para o espírito elevado tanto faz um pedaço a mais ou a menos de terra, um túmulo de granito ou cimento, uma estátua mortuária em formato de anjo ou um ramo de flor. Muito obrigado por nos ter ensinado que o espírito desencarnado se reunirá aos que amam independentemente do cemitério, da terra, do túmulo... E eu tenho certeza de que o senhor está ao lado de pessoas que lhe querem bem.

- Que as boas lembranças e os bons ensinamentos deixados pelo senhor se transformem em vibrações capazes de impulsionar sua evolução e amortizar a dor da nossa perda. Eu sei que para o senhor também não deve ser fácil de desprender de quem tanto amou. Mas temos de nos confortar no sentimento de que a vida não acaba aqui, apenas recomeça, de outro modo e em outro lugar. E um dia a gente ainda vai se encontrar.

Sob aplausos, um pai nosso e pétalas de flores, o corpo de Gastón é sepultado. O espírito está livre.
Para quem esperava que Gastón se materializasse ali proporcionando uma visão coletiva ou incorporasse em alguém para dizer algumas palavras, o silêncio. O silêncio que venta seu hálito frio e seco por aquelas árvores acostumadas a guardar camadas e camadas de tristeza alheia em seu lenho.

Depois de se despedir de alguns conhecidos, e com a promessa de que continuará a freqüentar o centro espírita, Sebastian deixa o cemitério. Volta para o seu apartamento, toma um banho e fixa o olhar num porta-retrato com a imagem de Malena em um momento de descontração. Lembra de quando começaram a namorar. Dos sonhos que sonharam juntos. Da alegria depositada naquele relacionamento. Da leveza que, pouco a pouco, esvaiu-se.

Quantas vezes se encontraram e se amaram naquele apartamento localizado em Palermo. Anos depois, sobre aquela cama ainda é possível sentir o perfume de Malena. Uma sucessão de cenas passa pela cabeça de Sebastian. Depois que ele mudou para a casa dela, fechou o apartamento e parte dessa felicidade, como num relicário. Os momentos agradáveis que comungou ali ao lado da amada dão-lhe forças e, ao mesmo tempo, angustiam-no ainda mais, já que talvez nunca mais voltasse a viver ao menos um pouco daquilo.

Toma um banho demorado, troca de roupa e retorna ao hospital. Alicia e Micaela fazem caras e bocas diante de sua presença. Valentina o abraça e pergunta como foi lá em Gastón. Malena está do mesmo jeito: inconsciente e respirando com a ajuda de aparelhos. Sem clima para conversas, Sebastian vai para uma pequena capela, em honra a Nossa Senhora de Luján, erguida dentro do hospital.

Sozinho ao meio daquelas seis fileiras de bancos, ele pede com muita força pela cura da mulher. Entre uma oração e outra, chega ao cúmulo de dizer que abre mão de seu casamento em troca da recuperação de Malena. Concentra-se de tal maneira que sente um estranho formigamento se alastrando pelo corpo. Mãos, braços, pernas, cabeça. Num primeiro momento, fraqueja e interrompe a prece. Em seguida, insiste e o formigamento volta a lhe incomodar. E quanto mais reza, mais o corpo formiga. Até que ele perde os sentidos e...

E vê Malena com um vestido muito bonito, chorando em meio a uma estrada branca. Está sozinha. Não há mais ninguém perto dela. Só um clarão muito forte, uma paisagem de cores quentes, tão vibrantes a ponto de lhe fazer doer os olhos. Ele se aproxima, senta-se ao seu lado e diz que está com saudades. Avisa que todos a esperam preocupados e que ele vai levá-la de volta. Ela não diz nada e quando ele toca a mulher, ela simplesmente desaparece. Então, o cenário ganha contornos mais frios e um vento quieto. Quando ele percebe, quem está ali é um anjo negro.

Ele olha atentamente aquele anjo, vestido com uma túnica cinza que chega a lhe cobrir os pés, e diz que não se lembra de onde, mas que já o conhece. Olha atentamente para aquela criatura divina e diz que já o viu algumas vezes em seu trabalho, na rua e mais nitidamente na porta da igreja no dia da missa de formatura de Micaela. Mas afirma que em todas as vezes que o viu ele não passava de um homem comum. Diz que já viu sua imagem no espelho de sua casa, no fundo de um copo com água, em sonhos e pesadelos. Ao perguntar seu nome, se é seu anjo da guarda, o que faz ali, aquele espírito não nega nem confirma as perguntas.

Ele pede para que, se for mesmo seu anjo da guarda, que não deixa nada de ruim acontecer com Malena, que proteja Diego e Gastón no plano superior. Pede também para que dê forças para Valentina, Tomás e, principalmente, Micaela, que está muito perturbada. Pede para que ele consiga provar sua inocência e que afaste Jhaver de sua vida. Aliás, se possível, que ele destrua Jhaver. Nesse momento, o anjo diz que não pode realizar tais pedidos. Sebastian pergunta se ele não tem força para isso…

O anjo só balança a cabeça e diz, abrindo suas asas acinzentadas:

- Eu sou Jhaver.

- Maldito. Desgraçado. Lazarento. Como tem coragem de vir aqui?

- Tem certeza de que fui eu quem veio a algum lugar?

- Meu Deus. Você me trouxe para cá. É uma emboscada. Agora, vai me prender, me torturar, me matar.

- Gastón e Valentina não lhe ensinaram nada. Não sou um anjo da guarda, mas também não sou um ceifador. Consegue compreender o papel de um anjo castigador?

- Onde está Malena? Ela estava aqui antes de você chegar. O que fez com ela?

- Apenas permiti que você a visse. Deveria me agradecer por isso.

- Agradecer a quem destruiu a minha vida?

- Se parar para pensar vai ver que quem lhe faz mal, de verdade, é você mesmo. Se eu estou em sua vida é porque me chamou por meio de pensamentos ou atitudes.

- O que quer de mim? Deixe-me sair.

- Quero apenas dizer que eu cumpri o nosso período de trégua. Pode não acreditar, mas não fui eu quem esteve à frente dos últimos acontecimentos. Não fui eu quem cuidou da morte de Gastón, da não reencarnação de Diego, tampouco da internação de Malena.

- Repete as mesmas coisas que disse a Tomás. E espera que eu acredite nisso?

- E por que não? Sou um anjo?

- Um anjo do mal, um castigador?

- Sou apenas a palmatória divina, um anjo que contém os abusos cometidos contra Deus. Agora, se quiser achar esse castigador impiedoso, carniceiro e injusto, olhe para dentro de você.

- Quer colocar a culpa de tudo isso em mim? Isso só pode ser uma estratégia de seus castigos. Quer me levar ao suicídio?

- Eu conheço muito bem os seus medos e suas fraquezas. E por isso mesmo estou aqui. Afinal, sei que está muito próximo de se auto-condenar ao vale dos suicidas. E isso não será bom nem para você nem para mim.

- Não venha me ameaçar. O que quer?

- Por hora, apenas dizer que não fui eu quem regeu os últimos acontecimentos em sua vida.

- E por que faz questão de dizer isso? Essa sua face boazinha não combina com você.

Jhaver fica mudo.

- Deixe-me ver Malena outra vez?

Nesse momento, a imagem do espírito de Malena, vestida de branco, aparece com outro espírito ao seu lado. Um senhor de sobrancelhas grossas, com uma túnica azul escura e nariz afilado. Eles conversam. O homem, já de idade, estende a mão e a levanta…

Sebastian vai ao encontro deles, fala com os dois, mas ninguém o escuta. E a imagem vai desaparecendo lentamente, perdendo-se no meio daquele cenário.

- Por que ela não me escuta? Quem é aquele homem? Isso é mentira, não é? Uma ilusão que você faz para me tentar. É mentira.

- Se você quiser salvar Malena vai ter que confiar em mim…

- Nunca, nunca, nunca…

Repetindo essa palavra entre suores e gestos descordenados, Sebastian acorda sobre uma maca do hospital. A enfermeira diz que ele ficou desacordado por alguns minutos. Diz que sua pressão está bastante alterada e pergunta quando foi a última vez que ele comeu alguma coisa. Ele se lembra de que está há muitas horas, dias, semanas sem comer. Na verdade, está confuso.

Quando vê um homem negro entrando pela porta do quarto, o promotor avança em seu pescoço aos berros.

- Jhaver, agora eu acabo com você…

Mas está fraco e logo cai ao chão. Aquele é o médico responsável pelo setor de emergência. Com a ajuda da enfermeira, volta para cama. O médico diz que a fome e o estado emocional podem trazer delírios. Aplica-lhe uma medicação dentro do soro e diz que ele tem uma visita.

Deve ser Valentina, pensa ele.

Quando a porta se abre, surge a pequena Susana. A menina entra com um ramalhete de flores, dizendo que veio visitar seu amigo. Sebastian pergunta como ela soube que ele está ali. Ela pergunta se ele pode guardar segredo. Sob uma resposta afirmativa, ela diz, em seu ouvido, que foi um anjo negro quem lhe contou.

Sebastian leva as mãos à testa em reação a uma forte e repentina dor de cabeça.

Observação do autor: Próximo capítulo: dia 1º de julho (quinta-feira)


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