Daniel Campos

O Castigador


2010 - Romance

Editora Auxiliadora

Resumo

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08/11/2010 - Capítulo 58

E Franco Palácio roubou a cena

A agitação só faz crescer nas proximidades da delegacia. Há pessoas querendo que Sebastian dê notícias sobre seus parentes mortos. Há doentes querendo simplesmente tocá-lo na esperança de alcançarem a cura. Há crentes querendo beijar-lhe os pés e há descrentes querendo apedrejá-lo. Independentemente dos desejos de santificá-lo ou demonizá-lo é unânime o pensamento de que um ser humano conseguiu um fato dos mais relevantes: que a existência de um Deus castigador fosse aberta e amplamente discutida.

Jornalistas se acotovelam na expectativa de conseguir uma informação ou uma imagem capaz de esclarecer, ilustrar e até mesmo apimentar ainda mais essa história. Religiosos fazem reuniões e mais reuniões, emitindo uma centena de notas públicas. O presidente da Argentina, aconselhado pela assessoria a não se posicionar diante de assunto tão delicado, embasa suas declarações na idéia de que o governo está tomando todas as providências para que seja feita Justiça em relação a esse caso. Contudo, outras autoridades são mais incisivas chegando a pedir a prisão perpétua de Sebastian.

Governistas temem que essa suposta liderança espiritual galgada por Sebastian influencie setores como a política e a economia argentina. Isso porque o clima de tensão impregnou os ares num perfume que lembra notas de Guerra das Malvinas. A comoção social criada em torno do promotor pode ser convergida a qualquer momento para uma guerra civil. Tanto que a oposição, de forma oportuna, saiu em defesa daquele que propagou a existência de Jhaver. Há parlamentares pedindo a sua soltura com vistas a aumentar o cenário de caos. Buenos Aires, definitivamente, tornou-se um barril de pólvora.

Por falar em caos, a violência toma conta das ruas. Além de protestos pacíficos, há confrontos diários entre os que pregam a libertação e a condenação de Sebastian. Também há confronto físico entre esses grupos e a polícia e as forças armadas. Países vizinhos oferecem ajuda. Celebridades argentinas estão divididas. Há quem apóie e quem reprove as revelações do promotor. Personalidades e organismos internacionais começam a fazer pressão. Algumas nações pedem até mesmo a extradição do médium, oferecendo exílio.

Marcel Bresson está em todos os jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão. Além dele, outros espíritas também ganharam evidência em canais de comunicação e rodas de conversa. As livrarias registraram recordes de venda nas estantes dedicadas ao espiritismo. Nunca se discutiu a doutrina espírita de forma tão acalorada. E há uma discussão também dentro do espiritismo, já que muitos não concordam com essa idéia de um Deus que castiga.

Especialistas profetizam que o mundo está prestes a passar por uma grande reforma religiosa. É necessário acrescentar Jhaver e outras informações em livros sagrados. Além do mais, Sebastian está escrevendo um livro que pode mudar tudo o que se conhece a aprendeu até hoje sobre esse assunto. Para muitos, um novo Evangelho está sendo escrito. Um novo Evangelho que pode enfraquecer e, até mesmo, destruir religiões, além de criar uma nova Igreja ou doutrina.

Por tudo isso, o julgamento de Sebastian é o evento mais aguardado dos últimos tempos. Embora o governo quisesse colocar panos quentes e realizar esse julgamento de forma fechada e discreta, há pressão pelo contrário. Para desespero dos que querem passar despercebido, há pedidos de júri popular.

De qualquer modo, só há dois caminhos a serem seguidos, todos eles ainda muito nebulosos. Se o médium for condenado, poderá ser esquecido ou virar uma espécie de mártir. Caso seja inocentado, poderá liderar um exército de seguidores ou tornar-se apenas um teórico desses que são menores de que suas teorias.

Sebastian está isolado do mundo não há informações novas sobre Jhaver. Dessa forma, são realizados estudos e pesquisas, enfim, tentativas inúmeras de descobrir algo mais sobre esse anjo castigador. Segundo um professor, o nome Jhaver é oriundo de evoluções e transformações da língua: YHVH, YaHVeH, JaHWeH.

O Tetragrama Sagrado YHVH ou YHWH refere-se ao nome do Deus de Israel. O Hebraico ou Aramaico não usava vogais, uma língua composta apenas composta por consoantes. Contudo, o hebraico original é uma língua quase que completamente extinta. Ao longo das décadas, as pessoas perderam a capacidade de se pronunciar corretamente o nome de Deus, pois a língua precisaria se dobrar de uma forma em que especialistas no assunto descreveriam hoje em dia como impossível.

E como isso aconteceu? O Tetragrama que aparece milhares de vezes nas escrituras sagradas era um nome muito conhecido na época de Jesus, mas com a passar do tempo o significado fonético se perdeu. Para alguns estudiosos, há teses de que o nome de Deus era impronunciável e até mesmo de que passaram a não pronunciá-lo porque sentiam-se temerosos em transgredir o terceiro mandamento.

Outros estudiosos encaram YHWH como um Deus da natureza adorado no Sul de Canaã e pelos nómades dos desertos circundantes, intimamente ligado ao Monte Horebe, na Península do Sinai. Segundo o livro bíblico de Gênesis, foi o Deus YHWH que se revelou ao semita Abrão (depois chamado de Abraão) em Ur, na Baixa Mesopotâmia.

O Deus YHWH é assim identificado como a Divindade que causou o Dilúvio Bíblico. Ou seja, o Deus de Adão, de Abel, de Enoque e de Noé é um Deus que castiga.

Para os menos cultos, Jhaver vem de Javé, uma das formas como Deus é conhecido e invocado. E há diversas combinações como Javé Nakeh (o senhor que fere), Javé Sabbatoth (o senhor dos exércitos) e Javé Tsidkena (o senhor justiça nossa). Todas essas expressões conferem a Deus uma postura castigadora, distante daquela imagem divina de amor e perdão.

Para alguns, Jhaver é um espírito evoluído. Para outros, um anjo bom ou mau. Para outros ainda, um Deus. Isso sem falar daqueles que o desacreditam, taxando-o de fraude e invenção.

No âmbito da especulação, uma cigana revelou em um programa de entretenimento que o nome Jhaver é uma variação de Javer e de Chavier, representando por quatro arcanos. Estes, segundo ela, dizem muito sobre sua personalidade.

O primeiro, o Mago, refere-se à comunhão entre o consciente e o inconsciente. Ou seja, Jhaver habita um mundo próprio, uma dimensão única.

O segundo arcano é a Papisa ou a Grande Sacerdotisa, que diz respeito ao mistério dos sonhos e ilusões, regente da magia. O terceiro arcano é o Papa, que representa a presença de Deus nos três mundos possíveis, o divino, o intelectual e o físico.

Isto é, Jhaver é aquele cuja existência está além do concreto. É preciso ter fé para acreditar em sua presença, que se dá tanto no mundo material como imaterial. De alguma forma, ele é quem une e desune as pontes que ligam o homem aos planos de Deus.

Tudo isso conflui para o quarto arcano, que é representado pela carta dos Enamorados, que fala de uma encruzilhada: de um lado a virtude e de outro o vício. Representa o momento da escolha entre dois caminhos. Todo e qualquer castigo surge em decorrência dessa escolha.

Sem ter conhecimento da dimensão alcançada por suas declarações, Sebastian está sem comunicação dentro da cadeia, em jejum e escrevendo o livro sobre o anjo castigador. Já escreveu muitas páginas e embora muito do que colocasse nas folhas em branco parecesse confuso, possuía enorme sentido.

Afinal, não escreve sozinho, tampouco lê o que escreve. Às vezes, está em uma espécie de transe. Em outras, sente palavras sendo sopradas aos seus ouvidos. Em certas horas, sua mão é guiada. Em outras, escreve com inspiração nas experiências que vivenciou até agora.

Sebastian está escutando vozes, enxergando vultos, sentindo cheiros de essências e vibrações. Está mais sensível ao mundo dos espíritos. O que poderia ser diagnosticado como sintomas de loucura por estar preso há vários dias sem comer e sem falar com ninguém, na verdade é a evolução de sua mediunidade. Seus sonhos são cada vez mais reais. E ao acordar, lembra-se de caminhos percorridos e diálogos estabelecidos.

Ao contrário do que se pode pensar, a prisão tem lhe trazido conseqüências positivas. Ao menos, espiritualmente falando. Como os espíritos gostam de dizer, as mudanças verdadeiras acontecem nas piores crises, há males que vem para o bem, o exílio e o sofrimento são muitas vezes necessários.

Rompendo o estado de clausura, Sebastian recebe três visitas. Micaela, Tomas e Valentina. A sogra resistiu em vir, tanto que ficou na sala de espera. Os netos praticamente a obrigaram a trazê-los e a convencer o delegado de que eles tinham o direito de ver o padrasto.

O filho de Micaela estava próximo de nascer, tanto que exibia um barrigão. E ela faz questão que ele sinta o bebê se movendo em seu ventre. Tomas, já recuperado dos machucados que sofreu quando Sebastian estava viajando, trocou as palavras por abraços.

Embora demonstrassem contentamento por viverem aquele reencontro, os dois estavam preocupados com a situação. Queriam que o padrasto fosse solto e pudesse morar com eles, formar uma família novamente. Estavam dispostos a se esforçar para concretizarem esse sonho.

Eles avisam que Malena ainda está sob cuidados médicos. O tratamento fez muito mal para ela, deixou-a bastante fraca e debilitada. Precisaria de um tempo a mais para se recuperar.

Ansioso, Sebastian questiona se ela ao menos já perguntou ou falou alguma coisa sobre ele. Os dois silenciam. Eles queriam dizer outra coisa, mas não podiam mentir. Então mudam de assunto, falam de amenidades, como placares de jogos de futebol, filmes em cartaz, músicas. Antes de entrar na sala, decidiram que não falariam sobre as notícias dos jornais. A não ser que o padrasto perguntasse por elas, o que não aconteceu.

Sem graça por terem vindo de mãos vazias, avisam que como ele está de jejum não trouxeram nada para comer. Ao longo dos dez minutos que ficaram ali, desejaram boa sorte incontáveis vezes, perguntaram insistentemente se ele estava bem, abraçaram-no copiosamente e saíram quase que à força, conduzidos pelos policiais de plantão.

Lágrimas de saudade e de felicidade verteram num mesmo pranto. Antes do último aceno, Sebastian os consola e afirma que em breve estarão juntos novamente.

O delegado havia concedido uma visita quase impensável, já que se tratava de menores. No entanto, qualquer declaração negativa dos meninos a essa altura dos acontecimentos poderia causar expulsão de quadros da polícia. Foi, praticamente, uma cortesia.

Quando eles saem, uma pausa de três minutos. Sebastian já estava pronto para voltar à cela, quando fica olhos nos olhos com Valentina. Os olhos duros dela, os olhos surpresos dele.

- Está melhor do que eu pensava. Esperava lhe encontrar caído, implorando por uma migalha de pão. Esse jejum é puro marketing, não é?

- Que bom que veio, espero muitos dias por um abraço da senhora.

- Se depender de mim, vai ter que esperar por toda eternidade. Eu não abraço traidores. Aliás, os abraços de Jhaver não têm sido suficientes?

- Essa agressividade não combina com a senhora.

- Você pretende provocar uma revolução mesmo? Será que já não foi longe demais? Nós não merecemos sofrer ainda mais por sua causa. Mal saímos do hospital e somos perseguidos por repórteres. Há uma pequena multidão na frente da nossa casa, plantada lá dia e noite. Os telefones precisaram ser desligados. O que quer?

- Apenas viver em paz.

- Não acha que está indo pelo caminho contrário? Você transformou a cidade em um inferno.

- Estou seguindo o meu coração e os espíritos.

- Não me faça rir. Seguindo espíritos? Já perdi tempo demais. Quer saber, não sei o que me trouxe aqui. Vou-me embora.

Valentina vira de costas e começa a andar, Sebastian insiste:

- A senhora não vai me perdoar nunca?

- Não estou com cabeça para isso agora. Vou esperar seu julgamento.

- Precisa da justiça dos homens para saber se sou ou não inocente?

- Não me provoque.

- Tem medo do quê? De ceder...

- Foram tantas coisas. Tantos erros. Acabou me decepcionando muito. Eu não acredito em você.

- Pois eu acredito na senhora.

Nesse momento, Valentina muda de expressão e começa a chorar de soluçar. Ela vê Jhaver vestido de branco ao lado esquerdo de Sebastian e Franco, ao lado direito. As pernas estremecem, ela tem uma tonteira, os braços se elevam.

- Eu não acredito. É o senhor mesmo? Pensei que jamais iria vê-lo outra vez. Desde que desencarnou eu sempre lhe busquei...

Os dois espíritos não respondem nada. Ao menos, em palavras. Irradiam muita luz e desaparecem.

Ainda em estado de choque, Valentina se volta e abraça Sebastian pedindo desculpas por ter duvidado dele. Diz que fará de tudo para ajudá-lo. Que ela esteve cega e enganada esse tempo todo. Chora muito no ombro dele. E pede perdão.

Sebastian pergunta o que ela viu, qual a razão dessa mudança repentina, embora ele sentisse a presença de tais espíritos naquela sala.

Tremendo e pálida, é assim que ela não sai dali sem dizer absolutamente nada. Ao menos, nada que se pudesse fazer compreender. Sai com a certeza de que viu seu avô, o homem que fundou o centro espírita que passa de geração em geração pelas mãos de sua família.

Tê-lo visto ao lado de Jhaver e Sebastian só pode ser um sinal de que eles estão juntos, de que acreditam um no outro.

Encontrar Franco Palácio, um dos maiores médiuns que a Terra já conheceu, ali, naquela cadeia, foi um fato que não pode ser atribuído ao acaso.

Afinal, no mundo dos espíritos tudo tem sua hora e sua razão de acontecer.


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